Biombo Escuro

Temporada de Premiações

Tár

por Lucas Leal

12/03/2023; Foto: Divulgação

A Construção da Farsa

Existe uma troca de diálogo muito curiosa nos momentos finais de TÁR (2022), algo que me intrigou desde minha primeira assistida e que apenas agora me fez conseguir pensar em como iniciar um texto apropriado sobre um filme com tanto a dizer. Em dado momento, nos dez minutos finais, no qual a protagonista faz um passeio turístico em um barco num rio das Filipinas, seu novo local de trabalho, a regente pergunta ao guia turístico se seria possível mergulhar no rio, ao passo que lhe é respondido que é perigoso, pois crocodilos que participaram do set de gravações de Apocalypse Now (1979) escaparam e permaneceram no interior do rio. Lydia, surpresa, exclama que isso foi há muito tempo, ao passo que o guia turístico, prontamente responde: “Eles sobreviveram.”

Por mais que a mais nova obra de Todd Field seja bastante rica em transmitir seu discurso de forma imagética e performática, tal trecho representa perfeitamente o estudo de personagem construído pelo diretor e pela Cate Blanchett, e toda sua ascensão e queda. O filme se encontra bem menos interessado em se acomodar a abordar diretamente assuntos limitantes como A Cultura do Cancelamento, e opta por mergulhar na psicologia e nas consequências de perder completamente seus valores e seu próprio senso de identidade; e relacionando tais elementos não só com o ato de se entregar completamente a um tipo de arte (e os frutos e venenos consequentes disso), mas também com o poder do controle da percepção pública, e como tal percepção pode ser manipulada, temida e destruída. A Cultura do Cancelamento pós-Covid é apenas um contexto temporal (bastante interessante, por sinal) que implica nas relações tanto entre os personagens quanto com o espaço ao redor.

A trajetória da personagem e a forma na qual o longa a constrói e descasca indica perfeitamente tudo que foi citado aqui. Lydia Tár é a regente e compositora feminina mais célebre dos últimos tempos, representando uma força importante e necessária de liderança feminina em uma indústria da música clássica, dominada pela predominância do poder masculino. Contudo, ao longo de sua narrativa, o que era construído tão organicamente de forma quase mística sobre a inegabilidade da sua posição de poder é aos poucos destruído, revelando-se quase como uma grande farsa. Tár se mostra uma pianista excepcional, mas é aconselhada de forma risível pela pupila em relação a notas em sua nova composição. A regente fundou uma sociedade para promover maiores oportunidades de trabalho no ramo musical para regentes mulheres, mas nem ao menos sabe a data do Dia Internacional da Mulher; além, é claro, de maiores e mais graves revelações sobre suas relações predatórias. É uma personagem com um talento inegável, porém a construção e percepção desse talento é quase inteiramente baseada em seu infinito conhecimento musical, sua excentricidade e carisma, seu egocêntrico porém engajante falatório sobre seus próprios feitos, e à sua hipnotizante performance física em apresentações.

No fim das contas, Tár não é menos performática que sua própria intérprete (em seu melhor papel, vale ressaltar): uma falsa persona poderosa e incontestável construída por uma mulher determinada a controlar e manipular tudo em seu redor. O quão longe ela consegue alcançar depende do quão dominante ela consegue ser em relação aos demais; seja se aproveitando de sua posição de chefe para mexer seus pauzinhos afim de conquistar a adoração de novas assistentes, seja utilizando de sua influência para destruir a carreira de quem decidir escapar de seu ciclo predatório.

A direção do Todd Field representa e complementa perfeitamente esse completo desespero por controle. É tudo bastante calculado, uma direção que observa de forma bem impessoal, através de suas extensas lentes e de brilhantes composições, toda essa imponência e a gradual perda de equilíbrio da personagem. Em poucos filmes recentes existe uma colaboração tão marcante e necessária quanto a de Field e Blanchett. A forma na qual a personagem se destaca em meio ao espaço e aos outros, como a câmera muitas vezes estática e rigorosa consegue casar perfeitamente com o senso de observação e controle da personagem. Ele sem dúvida alguma aprendeu muito com o perfeccionismo e o controle de Stanley Kubrick, tendo contribuído com o diretor em De Olhos Bem Fechados (1999), possivelmente seu auge nessas questões (e talvez o seu melhor trabalho). Um longa como esse sem o total controle de alguém como ele poderia resultar em algo bastante estéril e redundante, porém a sobriedade da sua estética e o hipnótico controle de câmera aderem como nunca aos ambientes conduzidos pela presença da Lydia Tár.

Talvez seja essa excelente construção que consegue conduzir a uma tragédia, e especificamente um terceiro ato, tão interessante. A direção de Field materializa os prenúncios da decadência de Lydia através de sua relação com os espaços na qual sua fragilidade se permite surgir. Sua sensibilidade ao som permite barulhos invasivos enquanto compõe em sua segunda casa, e gritos de desespero e alarmes de polícia a interrompem durante seus exercícios; como se sua constante paranoia estivesse invadindo seus ambientes de refúgio. Aos poucos, através de elipses cada vez mais abruptas, vai se tendo uma maior noção do desastre que lhe ocorre; o que resulta em um dos momentos finais mais inesperados e implosivos que eu vi recentemente. Assim como a própria personagem, o longa se revela aos poucos como uma farsa em si, quebrando as grandiosidades e falsas pretensões e adquirindo observações cômicas bem pontuais em relação ao narcisismo de Tár, que acaba resultando em um hilário e desolador final. 

Indicado a seis estatuetas da Academia, cuja premiação ocorre esse domingo, TÁR se mostra ser um longa feroz e inusitado em torno das consequências de um personagem que se convence ser inconsequente. Um discurso de ironia disfarçado por um ótimo formalismo; que constrói toda sua imagem e sua narrativa em torno de uma farsa, com um final representativo do maior feito da personagem-título: dominação. Um estudo de alguém que utilizou de seu todo talento e poder no âmbito artístico para engolir tudo à sua frente. Uma mulher que tanto jogou fora seus valores e reprimiu suas raízes em nome da devoção artística e do pertencimento a sua posição, que acabou pertencente a lugar nenhum. Ela se mostra não muito diferente dos crocodilos do rio, fugindo para o interior apenas para aos poucos ir buscando novas presas pra caçar. Querendo ou não, ela sobreviveu.