Biombo Escuro

Estreias da Semana

Medida Provisória

por Guilherme Salomão

17/04/2022; Foto: Divulgação; Revisão: Tiago Ribeiro

O Brasil e o falso progresso da(s) Medida(s) provisória(s) 

Logo nos primeiros minutos de Medida Provisória, filme de estreia na direção de Lázaro Ramos, fica claro um elemento que será fundamental e acompanhará todo o processo de desenvolvimento de sua narrativa: o longa se passa em uma sociedade de hipocrisia notável. Principalmente por parte das chamadas autoridades e do poder público, que tomam decisões calcadas em uma ideia de progresso e melhoria, mas que, na verdade, acabam por surtir os efeitos contrários.

Isso é algo de se esperar vindo de personagens que se definem como sujeitos preconceituosos e sem compaixão pelo próximo, escondendo-se por trás de uma casca de falsa ética e moralidade. Desde o princípio, são apresentadas pelo diretor com o uso de diálogos de caráter expositivo - em determinados momentos, alguns dos personagens literalmente recitam frases no estilo de “Não sou racista, pois tenho um amigo negro”. Algo não muito distante da nossa realidade atual.

O longa apresenta um futuro brasileiro não especificado, onde é estabelecida uma ação que ordenará que todos os cidadãos negros deverão ser deportados de volta para a África. Uma medida que vêm dar lugar a ordem original que estabeleceria que a população negra receberia indenizações pelo que os seus antepassados escravos sofreram outrora. Nessa realidade, chama atenção o fato de os negros agora serem chamados de indivíduos de “melanina acentuada”. Uma clara representação metafórica de uma suposta melhoria na situação dos indivíduos dessa etnia, mas que se trata, na verdade, de um conceito que só reforça o falso progresso social de natureza hipócrita supracitado.

O humor ácido, nos minutos iniciais, funciona bem como uma espécie de descontração de caráter crítico, antes da virada central na trama, que levará Medida Provisória para ares onde a seriedade é mais demasiada. É a partir desses momentos que se estabelece maior tensão dramática, sobretudo naqueles da metade para o final de projeção, e que o filme se destaca. São inúmeras sequências que de tão fortes e chocantes, chegam a ter toques sutis de terror. As atuações são bem conduzidas, nas quais destaca-se Seu Jorge, o melhor representante desse equilíbrio entre comicidade e austeridade. A boa direção do cineasta estreante também brilha, alternando entre sequências de ação propriamente dita, onde opta pelo uso de câmera na mão, e momentos mais intimistas e reveladores, onde utiliza-se de planos detalhes, certeiros em sua construção.

Ademais, apesar da noção de futuro distópico, é notável como que no decorrer do longa não há um exagero na composição da Mise en Scène que busque consolidar essa noção. Detalhes brandos, como um aparelho eletrônico ou o interior de um carro, dão vida a essa ideia. Porém, os ambientes onde a ação se situa são majoritariamente atuais. Ainda no início do longa, por exemplo, há uma tomada situada na janela do apartamento dos protagonistas, onde estamos num plano fechado, focado nos personagens de seu Jorge e Alfred Enoch, mas que Ramos faz questão de afastar a câmera consideravelmente, revelando a estrutura majoritariamente contemporânea daquela realidade urbana.

Fica claro, aqui, a noção de que é irrelevante se estamos meses, anos ou décadas no futuro. Independentemente disso, o Brasil ainda é, apesar dos pequenos avanços, o mesmo que conhecemos. Na verdade, o que presenciamos no decorrer do desenvolvimento dos fatos é o retrocesso puro do país que ainda sofre das cicatrizes de seu passado. Se não bastasse essa noção ser representada de forma literal na ideia aberrante da Medida Provisória, ela ainda é apresentada de maneira central nos acontecimentos em si. Enquanto uma resistência contra a medida provisória se estabelece nos moldes de um quilombola, vemos paralelamente os protagonistas postos em situação de séria penúria. Assim, o derramamento de sangue apresenta-se como uma mera consequência de natureza inevitável e injusta.

[A partir deste trecho, o texto entra em spoilers sobre o filme]

Nesse contexto, porém, há uma decisão criativa relacionada a tragédia que deve ser questionada. Em determinado momento da conclusão, é elaborada uma montagem onde as mortes de dois personagens são intercaladas, complementadas por uma narração. Um deles, é um dos protagonistas negro, vítima das autoridades. O outro, um branco LGBTQI+, desertor do governo e que nutre um relacionamento com um dos integrantes do quilombo moderno, vitimado pelos próprios integrantes do grupo. Nessa sequência, a morte do segundo, além de não fazer o menor sentido, por não acrescentar nenhum impacto verdadeiro na audiência, acaba por contradizer toda a atmosfera de opressão e injustiça que vinha sendo construída, já que, agora, não há certo ou errado nessa história.

De qualquer forma, o clímax apresentado não é completamente desesperançoso, apesar de não chegar a ter uma natureza otimista. A resistência vive. Porém, o Brasil contemporâneo, o de outrora, e, tragicamente, o porvir, é o Brasil das Medidas Provisórias. É o Brasil onde a ordem e o progresso hão de ser uma bela frase simbólica, que jamais parece, entretanto, se consolidar como lema real. Por trás dela, muitas medidas ainda devem ser repreendidas para que o efeito não seja, assim como no filme aqui em questão, o contrário de suas supostas intenções. Independentemente de qualquer falha narrativa, a relevância social de Medida Provisória ainda é notável.


    Guilherme Salomão

    Redator

    Guilherme Salomão é Social Media, Produtor Audiovisual, Colunista e Criador de Conteúdo digital apaixonado por Cinema, Música e Cultura Pop. Administrador por formação, onde foi autor do TCC “O Poder da Marca no Cinema: O Caso Star Wars de George Lucas”, ele também estudou Produção Audiovisual na Academia Internacional de Cinema.