Biombo Escuro

25º Festival do Rio 

Peréio, eu te Odeio

por João Pedro Rodriguez

16/10/2023; Imagem: Festival do Rio

Tendo transcorrido mais de 20 anos desde que o projeto foi anunciado e começou a ser feito, “Peréio, eu te odeio” teve enfim sua estreia no último domingo (08) no Festival do Rio, em uma sessão lotada na Sala 1 do Estação Botafogo. Na apresentação da equipe, o diretor Allan Sieber registrou suas desculpas a Paulo Cesar Peréio pela demora na produção do filme, e seu apreço por ainda poder apresentá-lo ao ator em vida. Figura absolutamente incontornável que atravessa a história do cinema brasileiro, Peréio estava presente com seus 82 anos na sessão, rodeado por amigos, familiares e admiradores, que encheram a sala de risadas animadas ou saudosas ao longo de toda a projeção. Afinal, a premissa do filme sempre tinha sido não fazer uma biografia padrão (isto não seria nem possível neste caso), mas reunir as histórias mais infames e surreais relembradas por amigos e quem conviveu com ele, o que acaba tornando este um filme tanto sobre a excentricidade do biografado quanto sobre as pessoas que estavam ao seu redor, em sets de filmagem ou em casa ou na cachaça, e como todas elas, sua família, seus filhos, seus colegas, foram encontrando modos de lidar e se relacionar com suas maneiras enlouquecedoras.

É razoável considerar a dificuldade de enquadrar a trajetória de Peréio nos moldes do nosso tempo, de torná-la palatável ao gosto de 2023, uma vez que sua atratividade está ancorada num mergulho profundo nas forças do “politicamente incorreto”, além de outras forças mais obscuras nas quais sua mitologia está embebida. Nasceu junto ao Cinema Novo, com papéis fundamentais em “Os Fuzis” (1964) e em “O Bravo Guerreiro” (1968), mas na virada para os 70 já está enveredando seu caminho errante com velocidade, em direção a sua imagem de cafajeste supremo do Brasil, já consolidada à altura de “Vai trabalhar, vagabundo!” (1972), e que se alastra cinema brasileiro adentro pelas galáxias da Pornochanchada, do Cinema Marginal e afins, em uma carreira das mais prolíficas – quase inviável recontar a mais de centena de filmes por onde passou, figura que paira irredutível a vinculação com movimentos ou períodos. Logo cedo foi sendo borrada a linha que separava a persona artística que Peréio incorpora nos filmes do sujeito real, numa imbricação entre arte e vida, quando a crise do indivíduo fica indissociável da artística, que parece em consonância com questionamentos estéticos centrais na arte brasileira dos anos 70 no contexto da Ditadura. Algumas falas dos entrevistados no filme tentam desenvolver esse nó particular cultivado por Peréio, descrevendo-o como ímpeto irrefreável para a rebeldia que não reconhece limites nem consigo mesmo, ora interiorizado como autodestruição, ora exteriorizado no transtorno contínuo de toda situação que contenha a mínima polidez da hipocrisia, disposto a desmascarar uma burocracia das formalidades com esta sua espécie de sinceridade corrosiva, que no fim ressalta só o vazio pessoal, mas ao mesmo tempo brasileiro (social e histórico), que ronda seus personagens. Nos seus papéis como na sua existência, viveu de modo único o epíteto da exasperação e da curtição, da escangalhação infinita das normas de convívio da comunidade, do elogio da inadequação completa pelos vícios. Através da ambiguidade da atitude política feita sob a capa de um niilismo apolítico, Peréio também ganhou algo do respeito que possui exatamente pelo “desrespeito” voraz à expectativas do mundo e do cinema, um desprezo por quaisquer iniciativas da respeitabilidade, inclusive a de si mesmo, o que levou ao embrutecimento de sua imagem pública. Não à toa, entrevistados do filme vão citar mais de uma vez sua erudição escondida como prova da autoconsciência que havia por trás do seu aparente descontrole. Tudo isso o filme não se propõe resolver nem analisar, mas nos leva a pensar sobre em paralelo à sua descontração.

A montagem costura a contação de histórias, as cenas de filmes onde Peréio atuou e outras imagens (da televisão, etc.) de modo um pouco caótico – o que não chega a ser desinteressante, pelo contrário –, indo sem muita cronologia e omitindo informações que em uma biografia normal seriam esperadas (de onde Peréio veio, seus pais, sua formação), deixando pontas soltas como Pingo, o irmão mais velho de Peréio – que dizem que exerceu enorme influência sobre ele, mas não é desenvolvido para além disso. De modo geral, transparece realmente a impressão de um filme que levou duas décadas sendo feito, tanto pelo cruzamento de texturas entre imagens gravadas recentemente ou no início dos anos 2000, quanto, mais negativamente, por certas soluções que o projeto assumiu para ser concluído. A ideia de incluir o próprio processo conturbado de feitura do filme na narrativa possui, por um lado, uma chance bem-vinda de metalinguagem análoga à certas atitudes essenciais de Peréio, descartando o tom formal do documentário biográfico em troca de certa frontalidade, e trazendo a dificuldade de Allan Sieber em terminá-lo como parte da comédia. Por outro lado, abusar dessa escolha também traz desequilíbrio à estrutura do filme, quando as falas e a presença do próprio diretor começam a se sobrepor um pouco ao retrato de Peréio. São marcas do trabalho de Tasso Dourado, co-diretor do filme, que entrou no projeto há poucos anos e foi responsável por salvá-lo do limbo, amarrando o material pela montagem com linhas de coerência. De todo modo, a estética dos quadrinhos e do punk rock vindas da parte de Allan Sieber até combinaram bastante com o homenageado.

“Peréio, eu te odeio!”, afinal, acerta em seu tom de homenagem às avessas, sem uma complacência rasa à figura lendária de Peréio, ajustando-se à subversão e à contradição que ele tanto inspirava. E por mais que a anedota autorreferencial tenha um retorno bastante imediato no discurso do filme, ela sinaliza a complexidade existente em explorar e compreender uma figura como Peréio. São várias camadas a examinar quanto ao modo como se portava, como construiu-se publicamente, e o que se passava por trás da máscara que criou: quando sua presença em cena ficava mais desconcertante por vir de uma atitude vital do sujeito, que se embaralha nos próprios personagens controversos que vivencia, quebra-se a segurança quanto ao limite do filme e do ator. Certas passagens bastante polêmicas da sua vida parecem difíceis de ser transplantadas para o mundo atual, ou de serem encaixadas em uma memória limpinha e correta, mas o filme inclui algumas delas e apenas busca deixar claro que nenhum dos envolvidos, seja suas ex-mulheres ou seus colegas do cinema, guardou qualquer rancor. As histórias relembradas são muito boas e o filme abraça o teor celebratório inconsequente, fazendo a franca apologia ao uso de todas drogas e todos os absurdos vividos por Peréio, o que torna este um filme extremamente necessário em muitos sentidos. Na parte final, somos defrontados com o envelhecimento de Peréio através da imagem de seu corpo, que após tantas histórias, surge quase como um signo de resistência da matéria contra a consciência que a governou. Ver despido seu corpo idoso e frágil é uma imagem que reveste tudo que foi visto de outro peso, e nela se reflete bem essa mirada no interior de um abismo que é a vida/obra de Paulo César Peréio.