Biombo Escuro

cobertura de festivais

O Cinema de Miguel Hilari

por Tiago Ribeiro

28/06/2022; Foto: Universo Produção/Compañía(2019)

A experiência ritualística do tempo e as expressões da consciência humana

Foram exibidos, na 17 edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, três filmes do cineasta boliviano Miguel Hilari, de origem Aymara. Sâo eles: El corral y el viento(2014), Bocamina(2018) e Compañía(2019), sendo todos documentários que carregam concepções estéticas bastante únicas e que retratam a vida na Bolívia por uma óptica que emula a experiência de passagem do tempo experienciada nas regiões rurais, com um olhar aguçado para os processos da natureza e como eles se mesclam com o comportamento dos seres humanos.

Algo que transparece nos filmes de Hilari é o compasso lento, com planos longos que se desenrolam conforme o movimento natural dos objetos de cena. Em determinados momentos, são cavalos desenhando seus passos pelo topo de uma montanha repleta de neblina em um plano aberto; em outros, é a cadência do barco de um pescador, com todo o balanço das águas traduzido em cena por meio de uma câmera fixa na canoa. Este plano, presente em El corral y el viento, apresenta desdobramentos à medida que são adicionados elementos de significação, de acordo com a natureza que se desenrola em seu devir eterno.

Por intermédio desse modo de montagem esparso e que opta por prolongar os planos, Hilari entra em diálogo com concepções do slow cinema, um método comumente utilizado em produções ficcionais de cineastas como Kelly Reichardt e Lucrecia Martel. Mais precisamente, a estética slow é um caminho de emular a cadência da vida imprimida nos lugares em que o cineasta monta sua câmera, deixando as situações se desenrolarem e estabelecendo um compasso propositalmente lento e contemplativo.

Neste sentido, o que separa a forma fílmica de Hilari do restante dos cineastas slow acaba sendo justamente seu olho atento aos arquétipos que compõem a indumentária dos mais diversos tipos de ofícios. O olhar de Hilari procura pela expressão do característico, pelo que há de único no uniforme. Em certo ponto de Bocamina, esse direcionamento torna-se algo cinemanovista, com o olhar voltado pras expressões e cenhos franzidos daqueles que estuda com seu olhar. Mas o interesse do cineasta reside mesmo em como se externalizam os personagens que vivem dentro deles mesmos. É um cinema que descasca camadas psicológicas com seu olhar, buscando ficções pessoais próprias daqueles que sua câmera fita, como modo de conhecer seus mundos interiores. A lente compreende a cosmogonia que vive nas expressões da consciência humana, e a montagem hipnotiza o tempo de modo a fazê-lo passar mais devagar.

Tratando especificamente de Bocamina, o cineasta expõe no plano inicial um mapa antigo da cidade de Potosí, que foi um dos epicentros de mineração da américa espanhola. A transição para o mundo moderno nos leva para dentro de uma mina, onde podemos ver os trabalhadores em seu ofício, manipulando furadeiras e descarrilhando transportes de minério que faíscam no escuro. Hilari cria planos expressionistas, repleto de sombras e com as bordas escuras, compostos junto ao som do maquinário manipulado que reverbera pelas paredes tubulares de pedra, tornando o plano inescapável através da parede sonora criada. A contraposição que o cineasta boliviano faz com a Potosí moderna ocorre em uma escola, onde acompanhamos a rotina de crianças. Ouvi-las falar sobre o passado de seu próprio lugar é fascinante e evidencia a natureza cíclica do tempo. De forma similar ao filme, elas estudam o passado minerador e vivem as consequências de sua execução.

Ainda tratando de filmar a inocência e esplendor infantil, em El curral y el viento estão diversas imagens de crianças interagindo espontaneamente. É um filme que mergulha no onírico através de repetições e pequenas pontas soltas, que costuram o horizonte andino com o tecido dos sonhos. Um plano específico, de um homem descendo um morro, se repete diversas vezes, como se fosse uma memória que se esvanece. A metafísica aparece como método, e o tempo se desenrola de acordo com as diretrizes do diretor, que opta por mergulhar nos objetos que filma.

Em Compañía, seu filme mais recente, Hilari opera de modo similar à Lisandro Alonso em La Libertad(2001), destrinchando os métodos de trabalho. A disposição mental deste filme é fascinante, ditada pelo mantra das flautas da festa da morte da comunidade de Compañía. O filme encontra no mantra do ritual o epicentro da vivências das pessoas, suas atividades e trabalhos cotidianos. É no estado de hipnose no qual as pessoas exercem suas funções no mundo que está presente a morte, ou o eterno. Justamente por isso Hilari imbui em seus planos abertos os movimentos que compõem as atividades rotineiras de cada pessoa. O virar do volante de um caminheiro no topo dos Andes e construtores erguendo uma casa são alguns dos fluxos nos quais o filme embarca em buscas metafísicas. É o slow cinema aplicado a imanência das ações, como nos planos de James Benning, que Hilari emula seus raciocínios imagéticos.

Embarcar na filmografia de Miguel Hilari é como acompanhar uma obra única, visto que os filmes carregam consigo uma unidade perspectiva extremamente gratificante. Todos os três filmes imprimem seu próprio tempo e buscam pelo característico dentro do que seria uniforme. Em suma, nada é posto forma acidental em seus filmes, que implica significação em cada pequeno elemento de linguagem em seus plano, mergulhando nas vivências das comunidades bolivianas que estuda com sua câmera.


    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.