“Mulheres lindas / Bem arrojadas / Seus corpos em chamas / Em plena madrugada/ Essa
explosão de sensação / Tudo unido em um só coração”: feito de tom e imagens épicas, os versos deste
forró da banda Muleka 100 Calcinha são um bom resumo da atmosfera do novo filme de Adirley
Queirós e Joana Pimenta, cujo título leva o mesmo nome da canção. Outra visão de resistência na
Ceilândia, região da periferia de Brasília onde o realizador mora e constrói sua obra, “Mato Seco em
Chamas” contempla a história de três mulheres, irmãs por parte de pai, ex-penitenciárias, que têm
suas vivências atravessadas pelo encarceramento de várias formas. Andreia Vieira (que vem de “Era
uma vez Brasilia”) junta-se às estreantes Léa Alves da Silva e Joana Darc Furtado, que ao mesmo tempo
interpretam e não interpretam a si mesmas. Nesta espécie de realidade paralela, bruxaria da ficção,
elas são também as chefes do crime perfeito -- são traficantes de petróleo, controlam o negócio da
extração até a distribuição, com uma rede de entregadores própria.
Dia e noite vigiam sua jazida, escondida por muros de tijolos, no terreno afastado onde se vê
apenas as luzes de Brasília no horizonte. Joana Darc é Chitara, Rainha da Kebrada, a dona do negócio;
Andreia Vieira, em cena com o mesmo nome, frequenta o culto evangélico local e entra na política
para fundar o PPP (Partido do Povo Preso); mas a atenção recai sobretudo a Léa Alves que, entre as
passagens pelo presídio, vira sócia da irmã. Apesar da armadura de bruteza que seu trabalho e sua
vida demandam, é impressionante a variedade dos espectros de sua sexualidade que são
gradualmente desvelados. Guerreira raiz do sapabonde, à sua indecifrável opacidade acrescentam-se
diversas nuances do desejo, desde a franca putaria generalizada até um intimismo da maior
delicadeza. Trata-se de fazer conviver esses aspectos em sua multiplicidade, uma política de
alargamento dos esquematismos que deixa vir a aura sob a qual o indivíduo torna-se símbolo sem
deixar de ser único, inqualificável.
Aquilo que os trabalhos anteriores de Adirley tinham de elogio do falso, de fazer ficção
científica a partir das limitações, do ferro-velho e de uma reciclagem arquitetônica da cidade; em
“Mato Seco em Chamas” isso pende para um maior realismo e solidez, puxados talvez pela gravidade
do momento. O espaço da refinaria clandestina de petróleo é criado com uma concretude e um
detalhamento impressionantes. Poderia se ter recuado e feito o plano mais aberto, de modo que
entenderíamos um pouco melhor a organização daquele espaço, mas o interesse é pelo emaranhado,
pela riqueza visual dos detalhes. Filma-se longamente o trabalho das engrenagens, dos canos, o
líquido denso saindo da terra para os barris, todo aquele misto de fogo, poeira, suor e ferrugem;
cigarros sempre queimando perto da gasolina, a tensão do inflamável. No geral, o rejunte narrativo é
posto de lado por uma disposição mais pura e penetrante dos espaços. A refinaria e a fábrica de tijolos,
a igreja e o forró: as sequências tem certa autonomia, permitem encaixes, mas projetam uma
estrutura que remonta a uma cadeia produtiva, uma economia em suas várias instâncias, da matéria,
dos símbolos, dos afetos.
No mesmo sentido, nota-se a nível da imagem uma certa limpeza, uma redução ao essencial,
com planos fechados, fixos, mínima decupagem em cada cena. Como se o filme não possuísse um
discurso exatamente pronto, apenas apresentasse a matéria-prima para isso. Não se trata mais tanto
de ir e voltar entre os polos do documentário e da ficção, mas de encontrar um modo de filmar que
seja próximo e distanciado, o sentido do olhar documental coabitando o mesmo gesto que é uma
escolha de mise-en-scène – o comício bolsonarista e o comício encenado, ambos planos-sequência.
Radical em seu modo de operar a narração, de extrai-la da dimensão física, da força pura de um
semblante duradouro, o tempo é o signo da procura por exprimir a latência dessa revolta colossal e
inimaginável. Em seus filmes, costuma mesmo haver essa sensação de falta, de uma grande ausência,
como se as imagens pedissem uma difícil completude, ou uma autoevidência.
O cinema de Adirley tem a ver com uma tradição de abordagem do problema
documentário/ficção que parte do convite ao não-ator, ao sujeito comum, para uma criação em
diálogo, um processo de sensibilidades em conjunto. O espaço do cinema entendido como um
território onde a fabulação rasga e transforma o tecido da realidade, portanto busca se nutrir das
tensões reais em sua deformação reparadora. Um cinema ávido por dimensionar o tamanho que tem
uma vida, o universo que é uma existência. Através de sua presença, o sujeito traz todo o peso da vida
passada fora do cinema, e reencarna a si mesmo em sua potência criadora. Dessa vez, está sendo
regurgitado um sonho estranho do Pré-Sal com fascismo, empreendedorismo selvagem e o poder da
mulher preta. A solidão daquela paisagem, das madrugadas frias no posto de vigia, diz sobre noites e
vidas que são eternas, fora do tempo.