Biombo Escuro

Estreias da Semana

O Rio do DESEJO

por Tiago Ribeiro

23/03/2023; Foto: Primeiro Plano

Reflexos trágicos que descansam nas águas do rio Amazonas

A tentativa de construir narrativas de regiões geralmente excluídas do imaginário cinematográfico brasileiro carrega grande importância no panorama atual da produção cinematográfica no país. Tendo em vista as agressões sofridas pela região amazônica nos últimos anos, se provam cada vez mais urgentes ficções que evidenciem as vivências e fábulas dos que habitam esse lugar tão distante dos eixos comumente retratados nas experiências audiovisuais brasileiras. 

Tendo isso em mente, é importante destacar e debater o cinema brasileiro, em toda sua complexidade. "O Rio do Desejo", nova obra de Sérgio Machado, é um desses filmes que se envolvem profundamente com o local que retrata, absorvendo todas as características que o constituem dentro de sua linguagem. Isso se deve muito ao fato do filme ser a adaptação do conto "O Adeus do Comandante", de Milton Hatoum, imbuindo o filme com uma forte veia literária.

Neste sentido, a fotografia de Adrian Tejido se mostra a todo tempo no longa, repleto de cores luxuosas e que se aproveita do horizonte de Itacoatiara, onde o filme foi realizado, para compor uma iconografia de rios e florestas. A textura da água eleva a figura do rio, envolvendo todo o filme em seu devir eterno, algo que se conecta com a vivência do lugar. 

A princípio, o filme assume a estrutura de um thriller sobre crimes, como na sequência inicial em que somos introduzidos ao personagem Dalberto, interpretado por Daniel de Oliveira, que atua como policial na cena de um crime. Essa escolha pelo gênero é rapidamente deixada de lado, abrindo mão de um viés violento e moralista que a narrativa parecia tomar. 

Vê-se o futuro de Dalberto mudar ao conhecer Anaíra, personagem de Sophie Charlotte, uma mulher livre e que incorpora sua própria sexualidade, remetendo às personagens femininas de Jorge Amado. E o filme muda junto com seu personagem, igualmente embebido pela energia caótica e sensual de Anaíra, encarnando os desejos latentes da terra e dos corpos. "O Rio do Desejo" passa a operar em uma dimensão mais sensorial, na qual os personagens parecem movidos por forças da natureza. Destaca-se nesse sentido a construção espacial da casa de Dalberto, onde ainda habitam seus dois irmãos, Dalmo e Armando, além da presença da governanta da família, que atua como um baú de memórias adormecidas da família.

A forma como o passado acaba por ser definidor da relação dos irmãos paira sobre suas interações, como se o peso patriarcal do passado de sua família estivesse presente sempre com eles. As cenas em que todos estão à mesa acabam por ser repletas de intenções veladas, movidas pelos mistérios do passado de sua família. Nos diálogos sempre aparece a figura do "pai", que persegue cada irmão de uma forma distinta e reveladora sobre sua personalidade, evidenciando a influência da figura paterna que ainda perdura nos personagens.

A adição de Anaíra à família traz consigo um elemento que parece embalsamar desejos enterrados. Ela sonha junto de Dalberto em ter uma casa, enquanto ambos lutam contra dificuldades financeiras com o barco que comandam. Quando surge a oportunidade de embarcar em um trabalho para Iquitos, no Peru, Dalberto segue viagem em busca de compensações financeiras que possibilitem seus sonhos. A viagem ao Peru se prolonga indevidamente devido a conflitos com a lei estrangeira, enqunto Anaíra convive com seus dois irmãos, cujas relações começam a despertar paixões irrequietas, entrelaçando amores carnais e fantasmas do passado.

"O Rio do Desejo" funciona bem quando investiga suas raízes literárias, enquanto busca suscitar as tensões da ficção a partir das imanências do lugar que retrata. Um thriller sensual sobre desejo e passado, embebido pelas águas do rio, é um exemplo bastante concreto do que o cinema brasileiro pode ser quando explora horizontes externos àqueles do eixo sudestino, subvertendo o caminho de um realismo cruel e violento, ao preferir explorar as dimensões trágicas de seus personagens, presos eternamente a seus passados, condenados pelos seus desejos, pela terra e pelo rio. 

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.