Biombo Escuro

47ª Mostra de São Paulo

Estranho Caminho

por Tiago Ribeiro

28/10/2023; Imagem: Divulgação

Abrindo brechas de novos cinemas

A universalidade da experiência da pandemia foi algo que perpassou boa parte das narrativas em 2020. Talvez como nunca antes na história, um evento de proporções globais foi narrado por todos enquanto ele ainda acontecia, numa interconectividade que foi essencial para processar algo tão atípico como foi o lockdown. Inúmeros discursos foram produzidos enquanto ainda se estava entendendo a doença e suas implicações, em meio ao desconhecido do que de fato viria a ser.

Passados esses tempos, ficam-se as feridas que cortaram profundamente, e consequentemente novas histórias surgem, agora já em águas mais brandas, lidando com o que ficou no passado, mas que ainda surge dentro de nós. É o caso da narrativa autobiográfica de Estranho Caminho, novo filme do cineasta cearense Guto Parente, que estreou na 47ª  Mostra de São Paulo após uma passagem vitoriosa pelo festival nova-iorquino de Tribeca. 

A narrativa de Estranho Caminho se desenrola justamente no princípio da pandemia, em Março de 2020, época repleta de mistério e incerteza, que marcou o imaginário de grande parte do mundo profundamente. David retorna de Portugal para sua cidade natal, Fortaleza, com o intuito de exibir seu primeiro longa-metragem em um festival local. Ele se reconecta com velhos amigos e mantém constante contato com sua companheira em Portugal. Por estar vivendo fora do país há muito tempo, o protagonista tem que lidar com algumas pontas soltas que ficaram por ser resolvidas em sua terra natal. 

Quando são anunciados os primeiros estágios do lockdown e do caos que seguiu, David se vê impossibilitado de retornar à Portugal e sem lugar para ficar, visto que a pousada em que estava hospedado fechou. Essa situação extraordinária o obriga a se reconectar com seu pai, com quem não falava desde que deixou o Brasil. Seu pai é Geraldo, interpretado por Carlos Francisco, provavelmente o maior ator brasileiro em atividade; alguém que carrega um gênio forte, que se reconecta com o filho com grande relutância, alegando que precisa se concentrar em sua escrita. Nessa dificuldade de convívio, ambos se vêem na necessidade de coexistir nesse princípio incerto da pandemia, se reconectando enquanto o mundo se destroça lá fora, com um som aberrante de saxofone invadindo as janelas, como o prenúncio do que estava por vir. Por vezes com rompantes de raiva, em outras demonstrando afeto de forma velada, a relação de ambos se desenvolve hesitando, implicando uma distância que diminui na mesma medida em que cresce.  

A fotografia de Estranho Caminho, realizada por Linga Acácio, é apresentada sem grandiloquência, mas com uma profunda beleza e elegância, principalmente em como aparece o apartamento no qual David e Geraldo convivem. Sem apelar para distorções, a fotografia encontra momentos de extrema beleza e expressividade dentro do ambiente doméstico, sempre dialogando com o momento dramático em que o filme se encontra, mais naturalista e sutil nesses momentos. 

Ao mesmo tempo, a montagem abre brechas interessantes, que levam o filme para outros lugares. Incorporando a liberdade formal do experimental, Guto Parente faz das quebras com o realismo momentos de grande inventividade, como na cena em que assistimos junto de Geraldo o longa realizado por David, filmado em película pelo próprio Guto Parente, e que lembra algo feito simultaneamente por Ingnar Bergman e Leos Carax.

É interessante observar como o roteiro joga com as perspectivas e, ao mesmo tempo que incorpora à sua dramaturgia muito do que foi o enfrentamento da pandemia no Brasil - como no detalhe de uma pichação "Bolsonaro é o capeta", que aparce nas costas de David em certo momento - consegue utilizá-la para explorar as dimensões do reencontro entre pai e filho. É o cenário temporal perfeito para todas as formulações que Parente faz sobre o mundo e sua própria subjetividade.

Estranho Caminho funciona muito por transpor diversas imanências cinematográficas, por carregar consigo uma profunda liberdade em relação à própria forma. É um filme que carrega uma profunda marca regional do naturalismo cearense, ao mesmo tempo em que se explora a linguagem do experimental, sob um fundo que é essencialmente político. Provavelmente uma das grandes histórias produzidas sobre o que foi a pandemia, mas sem nunca se deixar ser apenas sobre isso.