Biombo Escuro

27º Festival É Tudo Verdade

Belchior - Apenas um COração Selvagem

por Tiago Ribeiro

07/04/2022; Foto: Acervo Globo; Revisão: Ana Poquechoque

As raízes impermanentes de um artista eterno

Dentro da trajetória de um artista, existem milhares de momentos de viradas, novas esquinas que levam a lugares diferentes. Para aqueles que não nascem sob as luzes dos holofotes, existe o antes e o depois, e toda uma jornada que envolveu a chegada de tal artista ao conhecimento público. O documentário Belchior - Apenas um Coração Selvagem (2022), dirigido por Natália Dias e Camilo Cavalcanti, desvela as diversas dimensões nas quais habitou Belchior. A obra, sobre quem provavelmente foi um dos maiores nomes da história da Música Popular Brasileira, estreia no 27º Festival É Tudo Verdade.

De certo modo, o documentário foge de algumas convenções do gênero documentário sobre músicos, evitando os talking heads de especialistas e figuras marcantes comentando sobre quem foi Belchior. Os diretores optam por, ao invés disso, confiar na força das imagens de arquivo do cantor e compositor, transportando-nos para os anos 70, época em que a voz de Belchior ressoava pelas rádios e televisões do país, imergindo o documentário entre a estética e a sensibilidade da época. O longa é complementado com interlúdios do ator Silvero Pereira, o Lunga de Bacurau(2019), que declama letras de canções de Belchior em filmagens pesadamente estilizadas. Elas remetem a essa época em que o filme tenta sempre permanecer, fazendo ressoar a experiência do cantor através dos tempos.

Os jogos de linguagem e o exercício da forma são postos com eficiência, e servem, em sua maioria, para destacar e realçar as inúmeras falas e performances registradas do cantor cearense. Além disso, o trabalho de pesquisa e a montagem das imagens de arquivo é bastante facilitado pelo boom da televisão e das mídias em geral, que acontecia no país, fruto de uma época em que muito começou a ser registrado. Com isso em mente, Apenas um Coração Selvagem estabelece um terreno fílmico no qual a voz de Belchior pode vibrar, em todo seu esplendor poético e filosófico.

Essa eficiência na construção da linguagem que põe a voz de Belchior no centro se junta ao trabalho de nos direcionar através dos caminhos tomados pela carreira do cantor e sobre as pautas que o circundam. Como uma celebridade da música, Belchior veio a se tornar uma figura de extrema influência, muito por sua trajetória envolver uma experiência comum da vida brasileira da segunda metade do século passado, a migração. De acordo com o próprio cantor, ter deixado sua terra natal para "encarar toda a vertigem da cidade" foi essencial para encontrar sua sonoridade e ânimo como compositor. Suas músicas adquiriram uma característica tão brasileira justamente por causa dessa mistura advinda da migração. Entre os mistos do compositor com raiz nordestina, pop sessentista e tropicália, surgiu o fenômeno de Belchior, e o documentário é bem sucedido em nos passar esse processo de construção dele. Os diretores optam, inclusive, por refletir sobre o impacto da figura dele diante das mídias, discutindo sobre a elevação dele a símbolo sexual e como isso colaborou para o impacto do cantor.

Apenas Um Coração Selvagem é um documentário que estabelece um caminho fílmico para que Belchior, entre suas falas enigmáticas, canções eternas e bigode característico, fale com o espectador. E faz isso ao se distinguir de outros documentários sobre artistas, como Onde a Coruja Dorme (2001), e de cinebiografias muito produzidas, como Tim Maia (2014) e Elis (2016). É um ponto fora da curva e distintamente brasileiro, como é seu objeto e sujeito, um cantor do interior cearense que veio para a metrópole carregando suas raízes impermanentes, pondo seu nome na história da música e no imaginário do brasileiro.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.