Biombo Escuro

12º Olhar de Cinema

Disco Boy

por Tiago Ribeiro

02/07/2023; Foto: Olhar de Cinema

Onde irmão mata irmão

As contradições deixadas pelo neocolonialismo na modernidade fez cisões e aprofundou disparidades já existentes entre as forças mundiais. O primeiro e o terceiro mundo estão se mesclando, conforme quantidades cada vez maiores de refugiados e imigrantes se deslocam para outros países em busca de um lugar seguro, ou de melhores condições de vida. 

Essas diásporas trouxeram grandes impactos nas populações de primeiro mundo, sobretudo europeias, cujo rosto mudou significativamente de umas décadas pra cá, junto de um sentimento xenofóbico que, por vezes, alimenta a atuação estatal e as forças de segurança. Isso é verdadeiro nos Estados Unidos, e é verdadeiro na França. A revolta popular que se instaurou após o assassinato de Nahel por parte da polícia francesa, menino de 17 anos de descendência argelina, é a consequência da inabilidade do poder público de lidar com as mudanças advindas dos processos coloniais impostos por eles mesmos no século passado. E também pela permissividade diante de discursos de ódio, bandeiras obrigatórias na extrema direita do primeiro mundo. 

As consequências da exploração e subjugação de populações ao redor do mundo contaminam os próprios quintais dos países que o fizeram. Em Athena, filme realizado em 2022 por Romain Gavras, vemos uma situação similar à que ocorre hoje na França, onde o assassinato de um jovem de ascendência norte africana leva à conflitos generalizados nas ruas, em uma sensação de guerra civil, onde irmão mata irmão. O Ódio, longa de 1995 dirigido por Mathieu Kassovitz, também aborda a violência policial sob a óptica da vingança de três jovens da periferia parisiense, que tentam viver suas vidas em meio ao tumulto do zeitgeist dos anos 90.

Mesmo com tamanho desconforto interno, ir para o primeiro mundo ainda persiste como uma ambição comum no dito terceiro mundo. A promessa de prosperidade nessas terras leva milhares a tentarem construir uma nova vida. Em Disco Boy o ator Franz Rogowski, notório por seu trabalho junto do diretor alemão Christian Petzold em Transit e Undine, interpreta um bielorusso que se junta à uma instituição paramilitar francesa em busca de adquirir cidadania no país. Seu personagem é Alex, que passa por um treinamento militar rigoroso, se familiarizando com o rigor com o qual deve conviver por uma certa quantidade de tempo até conseguir se tornar um cidadão francês. A crueza dessa passagem pelas tríades dos soldados soa similar às encenações do treinamento do Bope em Tropa de Elite, de Alexandre Padilha.

Paralelamente, a narrativa nos guia através da história de Jomo, um nigeriano que vive entre suas práticas religiosas e a defesa de sua terra, constantemente atacada por invasores estrangeiros. Sua ideologia se materializa através das danças praticadas pelas tribos nativas, que se mesclam à realidade militarizada com a qual tem de conviver.

Quando embarca para a guerra na Nigéria, vemos o rito de passagem pelo qual Alex tem de passar para se tornar, enfim, um francês. Durante o conflito, Abbruzzese cria, junto de sua fotógrafa Hélène Louvart, uma iconografia da guerra moderna que explora suas dimensões abstratas por vias de constituir uma atmosfera alucinatória. Louvart emprega imagens infravermelhas, muito associadas ao maquinário de guerra moderna, que parecem simbolizar um estado alterado de consciência, um subterfúgio usado para processar toda loucura da guerra. A guerra psicodélica de Abbruzzese remete aos esforços de Coppola em Apocalypse Now, mesmo que imbuído com a sensibilidade cinematográfica de Gaspar Noé. 

As experimentações com fotografia feitas por Louvart, inclusive, são o que melhor Disco Boy tem a dizer. No entanto, acabam perdendo força pela utilização pobre de suas ideias para criar relações narrativas e de significação. A fotógrafa é notória por seus trabalhos anteriores em filmes de Agnès Varda e Karim Ainöuz, em Vida Invisível e As Praias de Agnès

A história de Alex acaba por se constituir como uma tragédia. Ele torna-se aquele que foge de uma realidade opressiva apenas para tornar-se agente da morte daqueles saídos de realidades similares à sua. Nessa contradição as vidas se entrelaçam, e vibram mutuamente. No fim, a forma como o filme entende o outro não consegue se desprender de uma perspectiva essencialmente primeiro mundista, o que diminui significativamente o soco que pretende dar em sua audiência. Suas rimas visuais soam como estetizações exóticas, mas a falta de um delineado melhor para suas mensagens a tornam fugidias. Um filme mais preocupado com sua aparência do que com suas ideias.