Biombo Escuro

26ª Mostra de Tiradentes

Peixe Abissal

por Tiago Ribeiro

01/02/2023; Foto: Divulgação

Mergulhando num cosmos artístico

As barreiras que separam os fazeres artísticos nasceram para ser quebradas. O cinema existe justamente para conectar onde uma expressão termina e a próxima começa. Nada mais natural que a vida do multiartista Luís Capucho tenha chegado à luz da imaginação cinematográfica de Rafael Saar em "Peixe Abissal", documentário que ficcionaliza a obra do grande artista surgido dos anos 90, que além de ter um corpo de obra diverso e colorido, teve composições gravadas por grandes nomes como Cássia Eller e Ney Matogrosso.

Mas o intuito da ficção de Saar é o de nos convidar a cohabitar a mente e o instinto artístico de Capucho. Nesse sentido, a forma do filme gravita em torno da performance de suas músicas, criando o espaço de suas histórias e transmitindo as sensações e obsessões de sua obra. Nada mais natural que o diretor, antes da exibição do filme na 26ª Mostra de Tiradentes, tenha dito que ia produzir um videoclipe ao falar de seu filme. A impressão é de que "Peixe Abissal" assumiu essa condição de transformar em filme a imaginação de Capucho, chegando a um resultado bastante distinto, mesmo que por vezes essa estrutura caia em um estado repetitivo.

Mas "Peixe Abissal" chega ao imaginário através do documental, através do cotidiano. Luís Capucho foi diagnosticado soropositivo nos anos 90, e desde então vive com sequelas físicas decorrentes da doença. Este fato não é posto como tragédia, mas sim como um momento de virada na trajetória artística de Capucho. A partir de sua vida, Saar começa a explorar a dimensão do desejo e imaginário tão próprio do autor, com montagens elaboradas e colagens multimidiáticas.

Destaca-se a imaginação da cosmogonia artística de Capucho, materializada no espaço criado do Cinema Orly, lugar de exibição de filmes pornográficos. Saturados pelo desejo e de onde pipocam cenas e personagens pertencentes à obra literária de Capucho, promovendo um mergulho em luxúria e explicitude, bastante pertencente ao imaginário homossexual que habita a obra do autor.

Outras obsessões de Capucho envolvem seu fascínio por peixes e o amor por sua mãe. Para trazer vida a sua mãe, Rafael Saar utiliza-se da atriz Teuda Bara, que vive toda a exuberância maternal explicitada pela visão que o compositor tem de sua mãe. O tema dos peixes e da sensação da vida submersa é encarnado por animações que dão vida a rica iconografia implícita na arte de Capucho, fazendo do filme uma colagem de diferentes mídias e modos de operação, assumindo para si os atravessamentos artísticos próprios do sujeito de que trata.

A mescla entre a ficcionalização e o documental conduzidos por Saar mostram bastante controle da forma, e uma visão clara do que deve ser passado. Nesse sentido, "Peixe Abissal" não é um filme sobre processos, como "O Mistério de Picasso", de Henri-Georges Clouzot, onde se busca entender o artista através de suas mãos, da formação de seus traços. É, sim, um filme que busca adentrar a cabeça que imaginou tudo, transformando suas criações em imagens.

Abrangendo a música, a literatura e a pintura da criação idiossincrática de Luís Capucho, "Peixe Abissal" contempla a obra, espiritualidade e história de um homem através de um cinema que explicita o corpo de sua obra em um emaranhado caleidoscópico de mídias, expressões e relatos.


Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.