Biombo Escuro

Estreias da Semana

Aftersun

por Tiago Ribeiro

03/12/2022; Foto: Divulgação

O despertar para uma vida

Parcialmente ocultas, opacas e disruptivas, partículas de memória estão constantemente à espreita, ameaçando a percepção da realidade. Nesse retiro nostálgico da realidade, Lugar onde ficam resquícios das impressões mais vívidas da infância, sensações de férias longínquas e ensolaradas, construído pela experiência do ser que lembra, reside um oásis de afeto, terreno fértil para a construção fílmica. A diretora britânica Charlotte Wells explora esse lugar deslocado em Aftersun, seu filme de estreia, através das reminiscências que Sophie tem de seu pai, Calum, nas férias que ambos passaram juntos em sua infância. O retorno se dá através de fragmentos registrados por uma câmera miniDV, que abrem portas para universos e imanências que habitam o entorno das pequenas filmagens caseiras.

Wells constrói com muita vivacidade o lugar onde pai e filha passam suas férias, uma espécie de colônia de férias na Turquia. Dentro deste lugar Aftersun envolve-se em uma atmosfera cheia de azuis e amarelos saturados, que causam uma sensação quente, de passado. As texturas do miniDV servem como prólogos de grandes passagens, que se entrelaçam pela mente de Sophie. De certo modo, Wells estabelece uma relação similar a que Céline Sciamma faz em Petite Maman, no qual o contato com receptáculos de memórias promovem uma viagem temporal pelo universo do outro. Se a menina de Petite Maman é tomada por um encanto fabulesco ao conhecer sua mãe quando criança através do lugar onde ela viveu nessa idade, Sophie provoca suas lembranças ao revisitar os registros das últimas férias que passou com seu pai, numa tentativa de conhecê-lo.

Ambas as diretoras preparam o terreno para erguer as dimensões subjetivas de seus personagens com sensibilidades e modos de ficção distintos, mas que são suscitados pelas mesmas conversas com o passado, com o que restou. Nesse sentido, é natural que tanto Aftersun quanto Petite Maman consigam suscitar uma atmosfera nostálgica logo na superfície. Já nascem como reminiscência, embebidos pela força gravitacional de seus próprios centros emocionais.

Para além, Wells opera similarmente à Guillaume Brac em À L'abordage, optando por construir a ponte para seu universo ficcional em um retiro da realidade, num ambiente cheio de tobogãs, mergulhos na piscina e céus cobertos de praticantes de parapente. Só que ao contrário da inerente comédia da jornada de tolo do filme francês, Aftersun parece mais interessada nas dimensionalidades subjetivas que surgem da interação entre seus atores, Paul Mascal e Frankie Corio, que habitam essa colônia de férias dando vida a ilha de memória que vive dentro de Sophie.

Ao retornar para esse lugar fílmico concebido por Wells, Sophie chega ao princípio de algo em si, no momento em que descobria verdades maiores sobre a vida, mas é fatalmente confrontada pelo fim da relação com seu pai, que deixou de fazer parte de sua vida após esse verão mágico na Turquia. Encontrando formas de sair de um labirinto, de conhecer as pessoas através do passado, surge um grande despertar ensolarado, cheio de frescor e narratividade que é Aftersun, filme que coloca Charlotte Wells como uma das vozes mais interessantes do cinema independente moderno.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.