Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Nanny

por Guilherme Salomão

16/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

O horror sobrenatural como metáfora à realidade

Vencedor do Grand Prix do Festival de Cinema de Sundance 2022, Nanny, escrito e dirigido por Nikyatu Jusu, que aqui faz sua estreia na função de diretora, conta a história de Aisha (Anna Diop), uma imigrante não regulamentada do Senegal vivendo nos EUA, que começa a trabalhar como babá para um casal rico em Nova York. Constantemente atormentada por visões e pesadelos de natureza sobrenatural, seu maior desejo é trazer seu filho para viver com ela nos Estados Unidos, sendo necessário, para isso, enfrentar os percalços sociais daquela realidade e as suas possíveis consequências.

A partir do convívio mútuo e da condição de submissão de uma imigrante a uma família de elite, salienta-se, de antemão, como Nanny é um filme que firma sua estrutura narrativa por meio desse paralelismo entre duas realidades sociais distintas, evidenciando os resultados e características primordiais desse aspecto (em uma dinâmica que, por meio de um olhar mais generalista à essa história, remete até mesmo ao aclamado Parasita, de 2019, do sul-coreano Bong Joon-Ho). Assim, dado o contexto da trama, por mais triviais que comentários desse calibre possam parecer, a jornada da protagonista é um meio para que, concomitante a desafios maternos, temas como as desigualdades, injustiças e a realidade dos imigrantes nos Estados Unidos, da busca por melhores condições vida e de trabalho na chamada terra das oportunidades, sejam decorridos.

Aisha, que, em determinado momento do filme, revela que costumava ser uma professora em seu país natal, é uma pessoa de beleza e inteligência únicas. O seu desejo latente de rever seu filho, entretanto, é retardado a todo momento por Amy (Michelle Monaghan) e Adam (Morgan Spector), o casal que a contrata. Apesar da simpatia inicial a sua pessoa, episódios como atrasos em seu pagamento e, mais tarde, embates diretos entre a dupla e a personagem de Anna Diop, que não se acanha diante dos patrões, revelam a verdadeira natureza desses indivíduos, exploradores da boa “mão de obra” e dos recursos daqueles a quem fazem seus submissos, característica essa que ainda é alicerçada de forma sútil pelo trabalho de direção de arte do filme- Mais especificamente com relação ao personagem de Adam, que ostenta uma coleção de fotografias de registros trágicos do continente Africano emolduradas pela casa.

Indo além, a encenação de Nikatu Jusu, acompanhada por um ótimo trabalho de som e por uma trilha sonora de tons soturnos de Tanerélle Bartek Gliniak, que estão sempre a premeditar um perigo iminente, é destaque ao trazer à tona visualmente falando os temas de seu longa-metragem. Em um trabalho de bastante primor técnico, de início, destaca-se como a decupagem da diretora acerta em enquadrar Aisha sempre em posições de desconforto. Sobretudo, no luxuoso apartamento de seus patrões, onde, apesar do luxo em si dos ambientes, a fotografia de tons frios, principalmente o azul, e de sombras acentuadas, dão vida a um ambiente inóspito, em que a protagonista, interpretada de forma equilibrada entre a doçura e o incômodo por Anna Diop, nunca parece ser bem-vinda ou estar segura de fato.

A roupagem de terror sobrenatural, por sua vez, se manifesta de maneira mais tênue na trama, servindo como uma forma de manifestação metafórica à realidade social em que Aisha encontra-se inserida. As situações de horror propriamente ditas não aspiram por sustos vazios, buscando, na verdade, uma expressão de questões psicológicas da personagem, atormentada pelas saudades e pela ansiedade em reencontrar com seu filho e por essas injustiças que demarcaram sua trajetória, do Senegal aos EUA. Assim, ao invés de “Jump Scares”, presenciamos momentos de tom onírico, em sequências de devaneios equilibrados entre o belo e o macabro, onde surgem, maiormente, representações visuais de duas entidades da mitologia africana: a aranha Anansi e a Sereia Mami Wata, que, mais tarde, por intermédio da avó de seu interesse amoroso, uma espécie de sacerdotisa vidente, a protagonista vem a descobrir, em caráter de prenúncio fatídico para si mesma, que representam símbolos de luta e resistência frente a forças maiores do universo.

Abrindo espaço para o trágico e para uma conclusão consideravelmente aberta a interpretações, à medida em que o sonho de Aisha em rever o filho se torna uma frustração, Nanny triunfa, então, como um terror onde o horror funciona como uma manifestação sobrenatural e psicológica da realidade. Uma realidade, sobretudo, injusta, onde resta a Aisha, assim como às figuras de Anansi e Mami Wata, a resistência frente às forças de um universo que parecem ser muito maiores do que ela na busca por um final feliz.


Guilherme Salomão

Redator

Guilherme Salomão é Social Media, Produtor Audiovisual, Colunista e Criador de Conteúdo digital apaixonado por Cinema, Música e Cultura Pop. Administrador por formação, onde foi autor do TCC “O Poder da Marca no Cinema: O Caso Star Wars de George Lucas”, ele também estudou Produção Audiovisual na Academia Internacional de Cinema.