Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

lilith

Por João Pedro Rodriguez

13/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

Até sua obra anterior, o ótimo Sofá (2019), a filmografia de Bruno Safadi vinha se centralizando por um referencial direto do Rio de Janeiro. Com Lilith (2022), o cineasta ensaia um grande passo, troca a iconografia carioca pela bíblica e vai em direção a um filme que deseja ter a amplitude de um mito cosmogônico. Lilith é uma figura obscura e controversa que, segundo algumas tradições, teria sido a primeira mulher de Adão, vindo ao mundo antes de Eva e, ao contrário desta, não surgiu da costela do homem. Surge com o eclipse e traz consigo a noite, originária de uma natureza única, diversa da de Adão. Ela doma o fogo, dança com raios, e sabe narrar ao homem o princípio da criação, quando Deus encarou o vazio abismal. Quem encarna a poderosa entidade é Isabél Zuaa, e possivelmente esse é o filme que, desde As Boas Maneiras (2017), mais buscou se inspirar e se construir ao redor da figura icônica dessa atriz, cuja pele retinta e sotaque português parecem sugerir a força de uma síntese.

Até ela ser expulsa do Éden, vemos a convivência misteriosa de Adão e Lilith, dois seres a sós no planeta recém-nascido. A atmosfera de ínicio dos tempos, próxima da eternidade, é perseguida com um rigor diferente dos trabalhos anteriores de Safadi, principalmente pela confecção sonora, que projeta no extracampo uma vastidão, um mundo que nos rodeia, mesmo que apenas uma parte seja vista com os olhos; e também pelo trabalho cuidadoso com transições, sobreposições e texturas, que o filme valoriza na mesma medida que a porção narrativa. O drama fica sendo intervalado por trechos de pura abstração filmados em película, criando uma certa tensão no tecido do filme entre a corporalidade dos atores – no digital – e a liquidez, a transparência dessas visões sobrepostas da natureza. A película também é usada para intervenções diretas, com explosões de cores, desenhos e rabiscos volúveis, numa energia bem Brakhage.

Oscilando em ritmo constante entre os dois pólos, o filme ganha uma temporalidade peculiar e passa a sensação de que a parábola é sobre algo muito maior, sobre o mundo virgem, em ebulição, a noite e o dia, a passagem do caos à forma. As primeiras noites terrenas possuem a beleza da noite americana mais azulada. A gravidez de Eva, que vai parir a humanidade, vira uma sequência de sobreposições intensas sob sua barriga transparente. Em dado momento o filme como que se perde nesse devaneio, explorando longamente as modulações de luzes e filtros. De todo o arsenal, um dos recursos mais interessantes – usado desde Sofá (2019), mas sem o mesmo enlace no conceito –, são aquela espécie de feixes de luz coloridos que incidem e transitam sobre a imagem, como vapores que se interpõe ao projetor. Passagem de um arco de cores tingindo a tela, ou clareando e escurecendo rapidamente; efeito que remete a própria instabilidade da luz do cinema.

Tendo a montanha e o céu como palco, Lilith é um filme simbolista e ritualístico. Fruto de uma pesquisa de 10 anos, ele busca se inserir numa conversa iconográfica milenar das figurações do mito de Lilith. As pinturas e os desenhos são mostrados no final. Ainda assim, o filme deseja ser aberto e somente criar uma abertura de imagens evocativas para o mito desaguar no nosso presente. Inferências advindas da cor de pele dos três atores (Isabél Zuaa, Renato Góes, Nash Laila), uma mulher preta, um homem e uma mulher brancos, são pressupostos nessa atualização de Bruno Safadi, são os índices de uma sensibilidade atual.