Biombo Escuro

12º Olhar de Cinema

Casa Izabel

por Tiago Ribeiro

17/06/2023; Foto: Olhar de Cinema

As novas expressões do cinema queer brasileiro

Há muito a se desconstruir sobre a percepção que o Brasil tem de si mesmo. Há convenções que foram engendradas a partir de valores completamente retrógrados, e que desconsideram milhares de vivências. Algo que sempre aparece na chave da sátira jocosa, retratado como algo para se apontar e rir, deve encontrar novas manifestações que desmontam os preconceitos velados por trás dessas antigas representações. Fica sob a responsabilidade de artistas que de fato vivem esse universo remoldar o olhar objetificante que definiu como a sociedade brasileira encarou a vivência, por exemplo, de cross-dressers e de transgêneros.

Gil Baroni e Luiz Bertazzo, respectivamente diretor e roteirista, assumem esse papel de reescrever convenções através da ficção com Casa Izabel, novo esforço da dupla que estreou no 12º Olhar de Cinema. Eles demonstram sua versatilidade em filme bastante distinto de Alice Júnior, longa anterior da dupla que flertava com o filme adolescente de high school, mas subvertendo as convenções de gênero contando a história de uma menina trans.

Em Casa Izabel, retornamos ao passado. O filme opera em uma ilha de fantasia, deslocada do tempo e do espaço onde se passa, mesmo que funcione como alegoria deles. Na ditadura brasileira, anos 70, o retiro Casa Grande Izabel funciona como um lugar em que homens se vestem como mulheres e podem viver suas fantasias, em um paraíso distante do tempo, onde homens da elite podem enfim realizar seus desejos.

Neste retiro de uma realidade cruel, novata Regina chega de ônibus, e após encontrar seu figurino quer ser presidenta do país. Seus pares a desencorajam em uma bem humorada conversa à mesa, relegando-a ao papel de primeira-dama. Ela é guiada a encontrar sua expressão própria pela incendiária personagem Leila, única personagem negra da trama, e que apesar de batalhar contra o racismo velado do restante das frequentadoras da casa, parece ser a que mais carrega um espírito livre, enquanto ajuda sua mãe, a governanta, a cuidar da casa, ouvindo Elza Soares em seus headphones futuristas durante o tempo livre.

Dessa dinâmica entre as personagens é que aparecem os conflitos, e são apresentados os temas trabalhados por Gil Baroni e Luis Bertazzo. A montagem de Casa Izabel funciona muito bem com essa construção, introduzindo novos elementos enquanto nos confunde com os limites entre as fantasias que os hóspedes criam, os mistérios que se espreitam pelos cantos, e a realidade dolorosa em que vive o país distante. A governanta da casa, apesar de silenciosa e obediente diante de seus hóspedes luxuosos, lida com suas próprias mãos diante do desaparecimento do filho, que foi para a universidade e desapareceu devido a uma suposta revolução em que estava participando. 

Esse fundo da ditadura nos conduz às tensões que borbulham, e que devem acabar em tragédia. Realçando e destacando tanto a calma que precede a tempestade e os rompantes de violência está a exímia trilha sonora, feita por Jean Gabriell e Fábio Perez. Trabalhando por vezes sozinha, por vezes se mesclando a música diegética da personagem Pianista, a trilha original consegue evocar todas as forças ocultas que estão bem abaixo da superfície. Os músicos encontram na instrumentação formas de traduzir os temas do filme, com uma orquestração de cordas voltadas para o horror que remetem a Don't Look Now, de Nicolas Roeg. Mas a trilha não se resume a isso, com uma instrumentação diversa e espacial que marca momentos narrativos.

Mesmo que tentem silenciá-la, a revolução bate à porta, inclusive para a matriarca da Casa, a princesa Izabel, interpretada por Luís Melo, que captura toda a decadência que essa casa representa. Ela perde seus dias revendo antigas filmagens dos tempos de glória da casa, afastada dos outros hóspedes, sendo ajudada pela Leila para fazer todas as tarefas diárias.

No geral, fugindo de antigas convenções, Casa Izabel inova como um filme queer de época com toques expressionistas, que trabalha em confluência as diversas facetas da linguagem cinematográfica em prol de contar uma história original que é embebida da história do Brasil.