Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Padre Pio

por Tiago Ribeiro

16/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

Os princípios da fé

Pertencente a um momento bastante sensível da história da humanidade, a vida daquele que veio a ser elevado pela igreja católica como santo São Pio de Pietrelcina foi notoriamente popularizada devido à fama de suas ações, que eram ditas capazes de superar os limites da lógica terrena. Shia Labeouf encarna o santo em Padre Pio(2022), novo filme de Abel Ferrara, sob um contexto bastante conturbado da história italiana. Passando-se no pós Primeira Guerra, o filme de Ferrara alterna entre passagens de vivências do personagem interpretado por Shia Labeouf, com ações de um incipiente movimento socialista inspirado na Revolução Bolchevique que se propagava na comuna de San Giovanni Rotondo, no sul italiano.

Os eventos simultâneos que se desenrolam no filme encontram poucos pontos de interseção. Ferrara opta por alternar entre os dois, criando uma dinâmica núcleo/entorno bastante dinâmica, em um processo que evidencia tensões internas e coletivas vividas pela Itália na época. Tudo se passa na iminência das primeiras eleições livres da história do país, em uma democracia embrionária que em breve se veria tomada pelos camisas negras e pelo fascismo de Mussolini. E talvez seja essa doença incipiente que reside nos conflitos espirituais e políticos retratados em Padre Pio.

A performance de Shia é bastante explorada em cenas altamente estilizadas, explorando texturas de imagem similares às de Zeros e Uns(2021), trabalho anterior de Ferrara.Toda vez que ouvimos Shia cuspir com raiva e devoção "Diga que Jesus Cristo é o Nosso Senhor", é possível entender a força que o ator consegue impor para seu personagem, e as peculiaridades que Ferrara registra com sua câmera. Acompanhamos os exercícios de fé e os enfrentamentos de Pio diante de forças místicas que querem derrubá-lo, como em um momento específico no qual entra em confronto com uma atormentada e irreconhecível Asia Argento.

As profundas dimensões espirituais pelas quais transita o santo se contrapõem às questões terrenas e palpáveis pelas quais passam os camponeses que se organizam em torno de um movimento socialista no outro núcleo. Todos com performances apáticas e desenergizadas, os camponeses encarnam o sofrimento da exploração sofrida, como se restasse pouca energia para o ímpeto revolucionário após o fim de um árduo e mal recompensado dia de trabalho.

Ressoando sinistramente com nosso presente, um personagem em certo momento diz com todas as sílabas: "A bandeira vermelha jamais será hasteada junto da bandeira tricolor", fazendo referência à bandeira das ligas camponesas e à italiana. Ferrara também não poupa a própria igreja por legitimar os crimes cometidos por golpistas, pondo em xeque a incoerência das ações da igreja como instituição diante do cerne de suas crenças, encarnadas por Pio. A liberdade parece estar ao alcance das mãos, mas insiste em escapar, como se fosse apenas ilusória, imaterial como fumaça. Resta no final a tragédia que remete à Encouraçado Potemkin, conforme os heróis de Ferrara cumprem seus destinos, tornando-se mártires de causas perdidas.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.