Biombo Escuro

12º Olhar de Cinema

O Estranho

por Tiago Ribeiro

02/07/2023; Foto: Olhar de Cinema

A permanência de todas as coisas

Os efeitos causados pela ação humana no planeta se amontoam rápido, como pilhas de lixo ao redor do mundo. As provas da presença humana estão em quase todo lugar. Construções de abrigos, interferência nas matérias brutas naturais. A própria subjugação do outro. Todos viemos de algum lugar distante na história, e ao longo dessa linha infinita todos nossos ancestrais precisaram da natureza para sobreviver. 

É uma relação vital, que por vezes assume uma característica mutualista, em que existem vantagens evolutivas para ambas as partes, em uma relação que consegue se perpetuar devido às condições de sobrevivência de ambas as partes. Por vezes, no entanto, os agrupamentos humanos assumem relações predatórias com as fontes de seus arredores, num processo destrutivo que impossibilita a continuidade da parte explorada. Ela se esgota, sem possibilidade de retorno.

Tratando das mudanças sem volta provocadas pelo ser humano, erguemos cidades e as enxergamos através de luzes brilhantes que nos impedem de ver o céu. Um dos debates ambientais modernos gira em torno dessa questão, da ausência de céu intocado pela poluição luminosa que acompanha os seres humanos. Em um artigo para a BBC, Frankie Adkins escreve sobre a "corrida pela retomada da escuridão", que consiste na formação de comunidades e instituições que batalham pela manutenção de "zonas de céu escuro", pouco tocadas por poluição luminosa. O argumento é o de que o excesso de luz das cidades traz consequências ruins para a saúde humana, sendo possível utilizar-se de alternativas para iluminação que não prejudiquem a visão das estrelas. Nessa luta estão comunidades do sudoeste britânico, que buscam a escuridão como forma de melhorar a qualidade de vida, e facilitar a contemplação de milhares de astrônomos amadores. 

Uma das intervenções humanas que povoam os céus invisíveis são os aviões. Em O Estranho, Flora Dias e Juruna Mallon refletem sobre a cosmogonia de um aeroporto, e sobre tudo que passou ali antes. O recorte é a zona do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, mas tudo começa no passado, circundando a época da chegada dos colonizadores portugueses em terras tupiniquins. Uma reimaginação que mostra os passos dos indígenas e dos invasores que marcaram esse espaço, até então intocado por forças destrutivas. 

Algo permanece, mas ainda assim tudo parece ter mudado. Uma trabalhadora do maior aeroporto do Brasil, flutua entre observar o ir e vir das rodinhas das malas que giram pelo chão do aeroporto e fabulações cósmicas sobre os vestígios do passado junto de sua namorada. Ela brinca deixando pedaços de pedras antigas dentro de malas perdidas em seu tempo livre. Mas há uma inquietação em relação ao que deixou de ser para que houvesse Guarulhos.

O Estranho faz um esforço de recuperação do ficou marcado no lugar. Flora Dias e Juruna Mallon utilizam-se de um vasto repertório de formas cinematográficas para explorar tudo que circunda a desapropriação de comunidades indígenas feita por vias da construção de Guarulhos. Os diretores constituem uma iconografia diversa, da conversa franca documental ao trabalho com atores, em uma pesquisa profunda que capta as diversas nuances existentes na construção desse espaço moderno e civilizado.

Parece irônico substituir o lar de um povo antigo para se tornar um lugar de chegadas e partidas. E o longa metragem entende essa contradição, a transformação de algo permanente em algo transitório. Essa ideia é trabalhada, por exemplo, na forma como a mesma atriz que vive a funcionária de Guarulhos, interpreta também uma ancestral antiga, no ano de 1492, criando um vínculo que explora como tudo se perpetua na terra, e expõe, talvez, quando as coisas começaram a desandar.

As personagens da Guarulhos moderna procuram nas pedras, nas fotos antigas, provas do que restou de séculos de histórias. E ainda sentimos as vibrações espirituais que habitavam a região através de cenas com uma construção sonora exímia, através de rituais religiosos filmados. Tudo em O Estranho aponta para aquilo que restou. 

Apesar de ter uma capacidade reconstitutiva imensa, existem coisas que a natureza não consegue recuperar. Portas se fecham em caminhos sem volta para o que foi. Permanecem as provas do que existiu, a oralidade, os registros, as marcas na terra. A continuidade se dá por aqueles que se atém às práticas ancestrais e protegem o planeta. O mal da humanidade é espiritual, e muito já se foi perdido. O que são os filmes senão pequenos pedaços de céu intocados pela ação humana, que retém algo do mistério celeste que nos trouxe até o momento presente. 

Fontes

A corrida pela retomada da escuridão, por Frankie Adkins, BBC. Link: https://www.bbc.com/future/article/20220614-the-crusade-for-darker-night-skies