Biombo Escuro

Estreias da Semana

A Viagem de Pedro

por Tiago Ribeiro

28/08/2022; Foto: Primeiro Plano

Fabulando sobre lacunas históricas

A história é escrita por relatos de momentos, pequenos pedaços de narrativas que remanescem e permitem interpretar-se o que foi. Na mesma medida em que sabemos em certa medida o que ocorreu, surgem lacunas do não dito, da vida vivida por entre os feixes de luz pelos quais conseguimos entender a história. De um desses vãos de sombras desconhecidas surge o delírio febril A Viagem De Pedro(2021), da diretora Laís Bodanzky, veterana do distinto filme da retomada Bicho de Sete Cabeças(2001), seu longa de estréia similarmente atormentado. Em uma jornada estonteante como o balançar do alto mar, a fábula de A Viagem de Pedro investiga as raízes do primeiro momento do império brasileiro, desconstruindo a psique conturbada de sua figura de interesse, o imperador à época Dom Pedro I. Bodanzky realiza uma meditação sobre as figuras que veneramos, de grande renome, sempre vistas pelas lentes históricas através das pinturas grandiloquentes e das estátuas eternizadoras de momentos de glória.

 A Viagem de Pedro segue o momento, no ano de 1831, em que Dom Pedro I, interpretado por Cauã Reymond, deixa o Brasil e retorna a Portugal com o intuito de clamar o trono, em disputa com seu irmão Miguel. Ainda na costa do Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil, ouvimos através da construção espacial sonora do filme a hostilidade e o ódio direcionados àquele que proclamou a independência do país. Vozes revoltadas amaldiçoam a coroa, e podemos ouvir objetos sendo arremessados contra a fragata inglesa que vai cruzar o Atlântico. A sensação é de que Dom Pedro I está sendo expulso, saindo em fuga do país em que, menos de dez anos antes, havia feito tanta questão de ficar.

Complexificar uma figura cujas narrativas históricas sempre foram generosas é um dos trunfos de Bodanzky, que parece muito interessada em evidenciar a verdadeira posição que o rei ocupou na história. É notável em A Viagem de Pedro a vassalagem da coroa diante dos britânicos, verdadeiros condutores da fragata que leva Dom Pedro I de volta para sua terra. Neste sentido, a composição dos jantares opulentos da viagem é extremamente precisa, com Dom Pedro ocupando uma posição secundária da mesa, enquanto oficiais britânicos, interpretados por Francis Magee e Welket Bunguê, ocupam posições hierarquicamente mais importantes nas pontas da mesa.

A questão racial também é referida por Bodanzky, principalmente através dos personagens do Chef, interpretado por Sérgio Laurentino, e de Dira, que vem à vida pela atriz Isabél Zuaa. Ambos subjugam o personagem vivido por Cauã Reymond com suas transgressões e sabedoria, evidenciando a verdadeira dependência que existia na sociedade escravista. Os donos de escravos eram menos livres que os escravos, e desvelando isso que A Viagem de Pedro expõe a grande hipocrisia dessa sociedade.

Todas essas inversões de papéis são exploradas pela dimensão psicológica de Dom Pedro I, que acometido por sífilis, sofre com alucinações e reminiscências de seu passado. A opção pelo aspecto 4:3 ajuda a estabelecer o elemento do horizonte restrito que é habitar a cabeça do rei, remetendo a também ficção histórica latino-americana de Zama(2017), da diretora argentina Lucrecia Martel. Toda a exploração sensorial do crescente tormento da psique de Dom Pedro I, relegado ao balançar das águas e aos demônios de sua mente, remete a expedição em busca de Eldorado de Aguirre, a Cólera dos Deuses(1972), na qual as imagens vão, similarmente, se tornando menos confiáveis conforme mergulhamos nas profundezas tempestuosas do delírio.

O que se testemunha em A Viagem de Pedro é a imagem do rei transformada na de um rato da praga, sujeito às vontades de outros indivíduos, enquanto tenta desesperadamente se impor como a figura que a história construiu dele. A morte do mito imperial diante do vasto mundo atlântico é um trunfo dessa fabulação histórica, que busca derreter o bronze que solidifica as estátuas que povoam nossos espaços, narrativas e imaginários.

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.