Em seu novo filme, o diretor Kléber Mendonça Filho (Bacurau, Aquarius) se coloca com sua
voz e entra em cena com sua imagem, trazendo as suas memórias de modo mais direto do
que nas ficções antecedentes. Para tratar da história dos antigos cinemas de rua de Recife,
e como estes espaços atravessam o passado e o presente da cidade, Kléber conjuga os
valiosos registros do seu acervo pessoal com imagens outras (fotografias históricas,
imagens do cinema recifense) em seu esforço de reavivar estas ruínas adormecidas, e
deixar um pequeno documento para a memória coletiva em torno da experiência social das
salas de cinema. Mas antes disso, parece uma obra que nasce da necessidade mesma de
se fazer alguma coisa com o tanto que se guardou no acervo, com seu tesouro de arquivos
pessoais que capturaram o fim de uma era para o Cinema. Pôr em circulação a lembrança
daquele detalhe arquitetônico, daquele projecionista que conheceu, daquele tempo e
espaço perdidos, no mesmo movimento em que se organiza um discurso e um valor para
eles.
A estrutura ensaística se divide em 3 partes. A primeira é sobre a casa onde Kléber mora há
muito tempo, onde foram filmados vários dos seus filmes, trazendo a figura de sua mãe e
sua iniciação no mundo do cinema. São compartilhados detalhes dos filmes que tiveram
motivação pessoal, como o marcante cachorro de O Som ao Redor, cujo lugar na ficção não
estava longe da relação real que Kléber teve com Nico, o cachorro que vivia abandonado e
latindo na casa vizinha a sua. Ou faz comentários que tem a ver com a sua visão sobre o
seu próprio cinema: por exemplo, ao brincar em torno dos elogios que recebe pela direção
de arte dos seus filmes, meio insinuando que várias coisas (as ruas, as casas, creio) seriam
captadas diretamente ou com pouca intervenção. Não sei bem o que se quis dizer com isso,
mas acaba soando como certa mistificação, ou pelo menos um dado pouco sólido e que
acrescenta pouco.
O que foi mais interessante, de imediato, nesse começo, é que enquanto a narração vai
tranquila, até com um tom de casualidade na rota traçada, o fluxo das imagens vem numa
velocidade bastante rápida, imprevista para o começo do filme. Como se a montagem
apenas tomasse a frente e disparasse, num ritmo subordinado à algo mais que as palavras
sendo ditas. Cada ponto da casa vai então ser mostrado por registros e perspectivas
diversos, interpolados e variando entre si – o que poderia suscitar a ideia de simultaneidade
dos múltiplos tempos dentro daquele local. Enfim, ressoa uma inquietude nesta montagem,
uma tensão, que talvez suplante o que a fala de Kléber possui de equilibrada, dado que
toca lembranças delicadas (como a materna) com razoável cautela de manter-se fora do
viés obviamente sentimental.
A segunda parte foca no passado de alguns importantes cinemas de rua de Recife, e Kléber
continua a trazer sua experiência, sensações e sentimentos seus, mas se aproximando do
escopo coletivo. A centralização no pessoal/biográfico é uma forma de ir ao encontro
desses lugares, elementos, pessoas, acontecimentos, que são passíveis de serem
integrados em uma memória coletiva maior, tanto da cidade de Recife, quanto
(exemplarmente) de qualquer cidade brasileira, ou mesmo enquanto um mero estímulo, um
aceno, à futura História das Cidades que está por ser feita, para que se faça sempre
estreitamente ligada à uma História Social das Salas de Cinema. Quer dizer, a historiografia
não só dos filmes em si, ou melhor, até dos filmes também, mas enquanto parte do encontro
público e desse espaço físico de congregação. A terceira parte avança numa metáfora a
partir dos cinemas que viraram Igrejas, aproximando o ritual que é o cinema do ritual
religioso, mas à maneira de uma sugestão despretensiosa.
Em dado momento, o diretor compartilha conosco um questionamento que teve quando
escrevia sua fala: de que estaria repetindo duas vezes que amava e que isso poderia ser
um erro por redundância, mas conclui que não devemos deixar de reafirmar em vida o que
amamos. Essa fala diz muito sobre o lugar e a disposição desse filme e, de fato, o gesto de
colocar a si mesmo como tema não é simples. Pode facilmente incorrer em desarranjos
afetados, vide outros exemplos de autores do cinema brasileiro contemporâneo que fizeram
algo próximo disso, como Petra Costa com seu Democracia em Vertigem e João Moreira
Salles com seu No Intenso Agora. Mas Kléber consegue costurar com alguma justeza esse
vai-e-vem entre o dado biográfico e o apelo político, sem resvalar em grandes (e
ideologicamente duvidosas) interpretações de mundo que mais revelam crises de
identidade (ou de meia-idade) do inconsciente coletivo de uma Esquerda brasileira, do que
olham propriamente para as imagens que dispõem. No caso de “Retratos Fantasmas”, são
imagens boas de serem amplificadas. E é claro que algumas escolhas do filme – como as
músicas brasileiras fodas e entusiasmantes entrando alto (e dando inclusive um tom festivo
às vezes estranho), as curiosidades fortuitas do “mendonçaverso”, ou aquela cena final –
são bem menos por uma necessidade intrínseca da obra, do que por precisarem atender
certas expectativas da marca que seu nome virou, mas é porque Kléber embarcou nessa
disputa, no limite do cinema de nicho que se projeta no circuito comercial, e isso é louvável.
O seu trabalho de divulgação da alegria comunitária do cinema tem a contribuir.