Biombo Escuro

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Beau Tem Medo

por Tiago Ribeiro

04/05/2023; Foto: Divulgação

As vozes da insanidade

Navegar por diferentes vozes é um dos trunfos do cinema de ficção, podendo-se estabelecer narrativas a partir de diferentes perspectivas, seja se distanciando de personagens, ou até habitando-os. É a opção de alguns diretores jogar com a objetividade de uma narrativa em terceira pessoa. Algo que não poderia estar mais distante de como opera Beau Tem Medo, novo filme do cineasta Ari Aster. Conhecido pelos seus trabalhos anteriores Hereditário e Midsommar, o diretor estadunidense retorna com concepções bastante distintas, mas que ainda compartilham de uma mesma essência. 

Notório por em seus filmes anteriores encontrar sucesso ao lidar com temas ritualísticos que se misturam a contos de horror, em seu mais recente esforço, Aster opta por um profundo mergulho na psique de seu protagonista, explorando as possibilidades de uma diegese subjetiva. Nos mostrando as milhares manifestações de consciência de seu protagonista Beau, enquanto cria sequências e cenários alucinatórios, Aster encontra surrealismo entre o absurdo e o grotesco. Sentando no banco de carona da mente do personagem interpretado por Joaquin Phoenix, habitamos junto dele um universo hostil, constantemente invadido por sensações e imanências que se manifestam na forma de brutamontes assassinos e de maníacos esfaqueadores. Sempre à espreita no horizonte sem limites de uma consciência demasiado obstruída para discernir qualquer tipo de realidade.

De certo modo, Beau Tem Medo opera como um labirinto psicológico, cheio de armadilhas e caminhos despropositados. A jornada pela qual Beau passa é vagamente motivada por uma visita que irá fazer à sua mãe, discutida em uma consulta com seu psiquiatra, onde ele a relata e recebe uma receita para a troca de sua medicação. Ao retornar para sua residência, um apartamento vazio de expressão em um bairro decadente, repleto de de seres bizarros e execráveis que se comportam de formas randômicas, vemos a vida de um homem triste e medroso.

Beau é um homem cinza, que mais parece uma lata de atum vencida, com um invólucro industrial que omite seus conteúdos apodrecidos. Discursa de forma contida e com olhos assustados, como se quisesse se desculpar por sua existência. Um homem dominado por seus próprios demônios, que erguem esse labirinto que o cerca.  A aparência da decadência urbana dopada de ansiolíticos remete a algo entre o cinema de Todd Solondz e Sinédoque, Nova York, de Charlie Kaufman. Um inferno em tons pastéis onde a aparência plástica de peças publicitárias aparece como pesadelo de lugar nenhum.

Um atropelamento inesperado o leva para outro suprassumo da realidade estadunidense, o subúrbio. Mas no coração de uma família aparentemente estável, ainda não existe refúgio e redenção para Beau, que começa a sofrer com reminiscências de sua infância. Uma fuga para a floresta resulta em um encontro com uma trupe de teatro fantástica, que o leva para uma odisséia macabra através de cenários animados e pinturas. Um alento que acaba apenas como mais uma reafirmação da predestinação maldita de Beau. A sequência remete a algo como Sonhos, de Akira Kurosawa, caso o filme sofresse com acessos de esquizofrenia paranóide. 

Começando na sua entrada no mundo ao sair do útero, o destino de Beau parece estar amarrado com seu próprio purgatório edípico. Ari Aster evoca em Beau Tem Medo a sensação de se estar perdido na própria psique, como nos rabiscos de Don Hertzfeldt em It's Such a Beautiful Day. Sua maldição é transmitida geneticamente, e sua mente uma prisão perpétua cognitiva. Os intrusos estão sempre ali, bem na borda da visão, e não há escapatórias para aqueles amaldiçoados pelos gigantes que ergueram o mundo.