Biombo Escuro

25ª Mostra de Tiradentes

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por Luiza Furtado

31/01/2022; Foto: Divulgação

Ninguém jamais escreveu, pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou, exceto para, literalmente, sair do inferno - Artaud, 1947

É intrínseco em qualquer ciclo da história a necessidade de se moldar as coisas, seja a argila, como a protagonista Carla da Victoria faz durante o curta, seja as relações que construímos ao longo do tempo (ou mesmo a própria imagem que um forma de si mesmo). Em síntese, um processo contínuo onde se esculpe e deforma na mesma medida. O filme traz consigo o antagônico processo de escolha da mulher trans e capixaba Victoria em preservar determinadas tradições familiares na sua rotina ao mesmo tempo em que apresenta também sua necessidade vital de desagregação com determinados hábitos fatais sobre si mesma.

Assumir uma nova identidade de gênero e rejeitar aquilo lhe foi imposto pelo nascimento, segundo as imagens aqui propostas, é pôr em cheque o autoritarismo estampado pelo manguezal da região, esse ecossistema tão entrelaçado e enraizado que por vezes parece impossível de se escapar. Insurgir-se contra alguma figura que seja contrária a sua nova forma de ser é equivalente aqui a realizar uma poda. E uma vez que se restringe o agente sem eliminá-lo da sua vivência, é admitida uma circunstância onde estes galhos possam crescer novamente em uma desobstrução sem hostilidades.

Abro um adendo cômico para dizer que talvez Victoria tenha a sua substância absoluta representada no plano onde aparece amassando a argila com o pé ao som de Ludmilla (a comicidade dos fatos, onde o retrato festivo traduz tanto uma praxe cultural quanto uma necessidade material de subsistência). Não faltam no filme fenômenos e sensações à flor da pele: barulho de água, adentramentos pelo mangue e o entrelaçamento entre discurso interrompido e bifurcação infinita de uma unidade familiar em construção pela protagonista. Assim como, paralelamente a ritmação dos corpos presente na obra de Artaud: se através do mero pensamento não se dá verdadeira vazão à ciência de si e de sua circunvizinhança, o corpo extravasa e lateja a linguagem de que precisa para se fazer vivo.



    Luiza Furtado

    Redatora

    Estudante de Cinema da PUC-Rio. Redação e pesquisa em audiovisual. The sweet offering.