Biombo Escuro

Dimensões POlíticas do Cinema Brasileiro

As lutas do povo brasileiro: a ótica da Religião


por Guilherme Salomão

25/10/2022

No ano de 2015, em votação promovida pela Abraccine (Associação brasileira de críticos de cinema), O Pagador de Promessas foi eleito o nono melhor filme brasileiro de todos os tempos, de um total de 100 produções selecionadas e ranqueadas entre si (por motivo de curiosidade, o primeiro lugar ficou com o longa “Limite”, de 1931, do cineasta Mario Peixoto). Lançado no ano de 1962, o filme, que é inspirado em uma peça teatral homônima do dramaturgo brasileiro Dias Gomes, foi um grande marco de nossa sofrida história cinematográfica e, exatos 60 anos após seu lançamento original nos cinemas, finca-se como um dos mais emblemáticos retratos socioculturais brasileiros já registrados em filme.

Tradicional em um momento em que o revolucionário alvorecia no cinema nacional, tendo em vista que, naquela época, tomava cada vez mais forma o chamado Cinema Novo Brasileiro, inspirado principalmente pelo neorrealismo italiano (escola cinematográfica que pregava conceitos como a representação das realidades de forma nua e crua, filmando em ambientes e paisagens reais e com o uso de atores não profissionais), isso não impediu o filme de ser um sucesso. Afinal, estamos falando do primeiro e único longa-metragem brasileiro em toda a história a ser vencedor da Palma de Ouro do festival de cinema de Cannes, um dos mais respeitados prêmios no mundo da sétima arte. Além disso, apesar de não ter trazido a estatueta dourada para o brasil, “tabu” esse que persiste até hoje (torcemos para que o ótimo Marte Um o quebre, finalmente), foi ele também o primeiro filme brasileiro (e latino-americano) a ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Dirigido por Anselmo Duarte (na época, extremamente criticado por Glauber Rocha, um dos cineastas mais importantes do cinema novo, por seu “tradicionalismo” na direção), em O Pagador de Promessas acompanhamos a história de Zé do Burro (Leonardo Villar, em atuação marcante), um camponês humilde que vive com Rosa (Glória Menezes), sua esposa, em uma pequena propriedade cerca de 45 quilômetros da cidade de Salvador. Quando o burro de estimação de Zé é atingido por um raio, ele acaba por recorrer a um terreiro de candomblé, realizando uma promessa a Iansã (equivalente a Santa Bárbara na religião católica) para que esta salve a vida do animal. Quando o burro é curado, Zé, para cumprir com sua promessa, decide doar metade de seu sítio e inicia uma excruciante caminhada até Salvador, carregando uma cruz de madeira nas costas. Ele deseja entregá-la no altar da igreja de Santa Bárbara. Porém, ao chegar na cidade, acaba por esbarrar na resistência intolerante do padre Olavo (Dionísio Azevedo), que lhe nega a entrada na igreja por considerá-lo um herege, já que sua promessa foi realizada em um “terreiro de macumba”.

O Pagador de Promessas é um longa que, por essência, toma a religião como o principal foco de seu comentário. O resultado, por conseguinte, é uma história sobre a pluralidade e consequente intolerância religiosa que fez parte da formação e permeia a realidade sociocultural brasileira até a contemporaneidade, contada em tom de denúncia às suas consequências trágicas por Anselmo Duarte, que também foi roteirista do longa. Apesar disso, é incrível como que a questão religiosa serve igualmente como uma roupagem para uma representação de inúmeras outras questões tão vivas na nossa sociedade. Dentre elas, polarizações políticas, o sensacionalismo midiático, um conservadorismo fanático e cego como visão de mundo e a intolerância ao diferente como um todo, que são comumente capazes de serem interpretados nas entrelinhas do longa.

A partir de um contexto hostil que se estabelece na trama, Zé, um sujeito de extrema bondade e ingenuidade, é explorado a todo custo por terceiros. O protagonista vai de camponês humilde a herege e messias da reforma agrária e do fim do preconceito religioso mesmo sem nunca se quer ter almejado qualquer um desses status. Em síntese, essa é a história de um homem de bom coração, que é feito vítima de um sistema corrompido, onde, apesar de existirem verdadeiros apoiadores de sua causa, estão presentes também, paralelamente, aqueles que o tornam em herói não por vontade genuína, mas sim por puro oportunismo de uma situação de densa injustiça social.

Assim, em um final bastante trágico e, na mesma medida, dos mais emblemáticos e poéticos do cinema, um conflito entre uma multidão e policiais resulta na morte do personagem. A partir disso, a figura de Zé é utilizada para estabelecer uma alegoria do personagem com Jesus Cristo. Em um comovente ato que coroa o clímax da obra, seu corpo é posto em cima da cruz que ele mesmo carregou, com o povo o carregando, a seguir, à força para dentro da igreja. Em linhas gerais, uma conclusão agridoce. E perfeita, já que seria extremamente utópico que a jornada de Zé do Burro fosse concluída com um final feliz, que enfraquecesse as apreciações críticas tão fortes do filme.

Não seria exagero chamar O Pagador de Promessas de atemporal- termo esse que, nos dias de hoje, muitas vezes é utilizado de forma banal. Basta um simples olhar ao redor de nossa realidade para que possamos aferir tal fato. O personagem de Leonardo Villar é um dos mais brasileiros dos brasileiros que já foram representados no cinema. Afinal, Zé do Burro nunca quis ser herói. Mas é esse status que carrega (e aqui referente ao destino que lhe é reservado ao final do filme em si, e não pela visão dos oportunistas) que serve de exemplo para que nós continuemos a seguir em frente com nossos valores e ideais, por mais desafiante que isso seja em um mundo envolto por injustiças e intolerâncias.



Guilherme Salomão

Redator

Guilherme Salomão é Social Media, Produtor Audiovisual, Colunista e Criador de Conteúdo digital apaixonado por Cinema, Música e Cultura Pop. Administrador por formação, onde foi autor do TCC “O Poder da Marca no Cinema: O Caso Star Wars de George Lucas”, ele também estudou Produção Audiovisual na Academia Internacional de Cinema.