Biombo Escuro

Dimensões Políticas do Cinema Brasileiro

Incompreensão do Cinema Novo: A inutilidade do engajamento de um jovem deputado

por João Pedro Rodriguez

02/11/2022

Em um artigo de 1966, intitulado “Cinema Novo e Seu Público”, Gustavo Dahl reflete sobre “como vencer a contradição entre um cinema responsável no nível do pensamento e da linguagem e sua aceitação pelo público.” Observa que apenas um dos seis filmes lançados pelo Cinema Novo em 1965 “desenvolvia preocupações ideológicas que estavam na raiz do movimento”, que a maioria teria procurado “voluntariamente aproximar-se do público”, mas também aponta para as diversas dificuldades de atingir o público. Mesmo assim, após uma digressão na “História da Arte” para nos lembrar que a arte moderna foi o afastamento entre artista e público, indo depois na história do cinema para explicar o sentido das rupturas de Rossellini e Godard, depois de tudo isso, conclui afirmando que “o Cinema Novo sonha com esta pedra filosofal capaz de confundir as duas categorias e resolve, através disso, a grande contradição da arte moderna”. Talvez um dos traços mais marcantes do Cinema Novo seja realmente o modo como se detiveram, e tomaram para si, a incumbência desse enigma de conciliar desejos inconciliáveis, extraindo daí seu processo de mutação, seus pontos altos e baixos, as encruzilhadas e as soluções constituindo um pensamento artístico-social coletivo, feito à mostra, público. Provavelmente nem exista uma imagem que espelha mais a nação, mas uma riqueza muito específica do Cinema Novo seria ter cristalizado um ciclo de emoções de uma etapa da esquerda brasileira, flagrando o movimento que vai da aguda convicção na revolução social do final dos anos 50 até as amargas descobertas da instabilidade das próprias premissas e da improbabilidade do seu resultado.

Nesse sentido, O Bravo Guerreiro contribui de modo singular para pensar a relação do movimento com este fantasma do Público/Povo. Mesmo se pensarmos na tríade em que habitualmente está agrupado – junto à O Desafio (1965) e Terra em Transe (1967) – aproximados pelo entendimento de que deixam o escopo do Outro, que norteava o engajamento da primeira fase, e se voltam mais para si, para um autoquestionamento, para uma figuração da angústia própria a esse lugar do intelectual de esquerda. Afastando-se tanto da dramaturgia realista do primeiro quanto do tom grandiloquente do segundo, O Bravo Guerreiro vai em direção a uma colocação muito peculiar da problemática, oferecendo a visão mais sombria entre os três.

Acompanhamos o percurso de erros do deputado Miguel Horta, interpretado por um Paulo Cesar Pereio cadavérico. Cansado do dogmatismo ideólogico que limita a penetração do Partido Radical junto ao povo, Miguel decide abandoná-lo e ir para o Partido Nacional, numa estratégia desesperada para obter a aprovação de seu projeto de lei e finalmente contribuir com alguma mudança para a sociedade. Todos o avisam, mas o anti-herói trágico segue seu destino, e sua tentativa de burlar as regras do jogo somente leva a traições que comete seguidamente às suas origens sindicais, à carreira na oposição, ao seu casamento e, finalmente, a si mesmo.

À medida que se envolve, vai sendo engolido pelos velhos senhores da política; seu projeto é suprimido até sobrar o avesso do que almejava, e ele vê seu nome usado para assinar uma outra lei, um agrado para a Associação Industrial. Quem o guia nesse submundo é Augusto (atuação brilhante de Mário Lago), um dos poucos que, mesmo afundado na hipocrisia de décadas no poder, ainda nutre a ideia de ser puro, sonha em largar essa vida e ir para Roma, não fosse seu medo de perder dinheiro. Em Miguel, Augusto enxerga o jovem idealista que também foi um dia: através dessa dualidade, o filme leva o impasse a um nível existencial. Quer dizer, busca-se uma fabulação interessante desses homens do poder no Brasil, esses tantos que passam a eternidade vendo passar a história do país – sua afetação, suas racionalizações do dever patriótico para dissimular sua compulsão e seu parasitismo.

A trama toda é falada, verbalizada por corpos imóveis; as ações, os nomes, os complôs, ocorrem num espaço longe da realidade. O compasso dos diálogos gera um misto de tensão crescente com uma sublime monotonia. A estrutura matemática da intriga encadeia as sequências numa perfeita equação, como se desejasse demonstrar, passo a passo, o fundamento de sua angústia, como a demonstração fria de um argumento que acompanha seus desdobramentos até o colapso. Todos estão presos, presos por aquilo que falam, e o filme assume esta forma de um imenso falatório que é um labirinto mental. Cada ponto-de-vista profere sua justificativa sobre porque as coisas são como são, ou porque as coisas precisam ser como são. Gustavo Dahl reconstrói minuciosamente essa teia de raciocínios que cria a ficção da política e que confere um papel a cada peça no tabuleiro; as crenças, convicções, enfim, o conjunto de discursos. Sente-se a prontidão das frases, o peso das palavras, colidindo e girando. Cada vez que repetem, em especulações incessantes – “o povo é frágil”, “o povo é cego”, “o povo é uma criança”, “o povo não é culpado”, “vocês não são o povo” – os significados soam mais vagos.

O movimento foi sugado, absorvido pelo texto. Da imagem, limpa-se tudo que não seja absolutamente necessário para o desenvolvimento do pensamento do filme, deixando os cenários estranhamente vazios. Também a secura na duração de cada sequência, que nunca demora um segundo a mais, não abre nenhuma folga, nenhum floreio – e faz com que o filme corra em um só fôlego. Ao estancar a dramaturgia enquanto ornamentação, O Bravo Guerreiro tenta isolar o conceito, a abstração da ideia. É como se Dahl tratasse a ficção como suporte privilegiado para a formulação hipotética, um modo pungente de propor sua hipótese, sua dissecação clínica da inviabilidade da ação política, da impotência frente à máquina democrática. Por tudo isso, seria praticamente a refilmagem cinemanovista de Suplício de uma Alma (“Beyond a reasonable doubt”, 1956), clássico de Fritz Lang que indaga a inteligibilidade da conjuntura do sistema jurídico e da ficcionalidade. Mas é também uma dura autocrítica a um projeto de Esquerda que põe sua geração contra a parede, através do diagnóstico cruel que é a figura de Miguel, modelo da amargura, corroído pela culpa burguesa, e que deve ser enterrado. Seu longo discurso final na assembleia do sindicato – monólogo catártico onde discorre sobre sua vida e se justifica ao Povo, num tom que oscila entre um sermão e uma sessão psicanalítica – é o ato de fala consumado, que constitui o filme e seu sentido de expurgação do pesadelo. Ou, então, de implosão e medo. Na última imagem, a boca engolindo o cano da arma: não o vemos puxar o gatilho.