Biombo Escuro

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Asteroid City

por Tiago Ribeiro

14/08/2023; Foto: Divulgação

Uma trupe de astrônomos e cadetes espaciais abre portas no cinema

Já bem avançado em sua terceira década de carreira, Wes Anderson desenvolveu ao longo de seus filmes uma linguagem própria com diversas peculiaridades, tornando seu estilo um dos mais reconhecíveis do panorama moderno do cinema mundial. Isto se deve à facilidade com a qual concebe seus universos a partir de uma característica pictórica bem palpável, obra resultante da sinergia entre texturas de imagem, vibrância da direção de arte e movimentos de câmera estilizados. 

Lançando seu décimo primeiro longa, Wes Anderson faz em Asteroid City um dos trabalhos mais inspirados de sua carreira, mostrando imenso domínio da linguagem que desenvolveu, enquanto segue propondo novas ideias que apenas cavam mais fundo seu poço de ficção repleto de excentricidades. É, sem dúvida, seu filme mais megalomaníaco, em que traz de volta diversas das obsessões de sua filmografia, além dos costumazes colaboradores, tudo em um nível ridiculamente exagerado. Esse trabalho grandiloquente fala muito sobre sua relação com os atores que vieram a recorrentemente trabalhar em seus filmes, encontrando encarnações pictóricas que moldam rostos conhecidos em figuras pertencentes ao universo ficcional tão familiar proposto por Wes.

Nesse sentido, todos pertencem ali, e cada qual cumpre seu papel diante do todo. Asteroid City é um lugarejo perdido no meio do deserto da Califórnia/Nevada/Arizona, sede de testes de bombas atômicas e de um congresso para jovens prodígios superdotados apresentarem suas invenções científicas. Chegamos à cidade de trem, não sem antes sermos apresentados ao autor da peça na qual existe essa cidade no meio do deserto, interpretado por um atormentado Edward Norton. Tom Hanks interpreta a figura paterna que comumente aparece nos filmes de Anderson interpretada por Bill Murray, e o herói egoísta e problemático é um fotógrafo de guerra interpretado por Jason Schwartzman, protagonista de seu segundo longa Rushmore. Bryan Cranston é o apresentador do programa no qual existem os personagens que fazem a peça e a peça, fazendo uma caricatura de Rod Serling, notório apresentador de Twilight Zone, série televisiva de ficção científica dos anos 60. O humor visual e a espacialidade "casa de bonecas" dos filmes de Jacques Tati, como Mon Oncle, também estão dentre os maneirismos com os quais Anderson joga.

A impressão que se tem ao olhar para o deserto de Asteroid City e para as peripécias de seus inúmeros personagens é a de se estar assistindo a um desenho animado hiper-colorido de comédia, mas que é na verdade uma peça escrita por um dramaturgo depressivo e solitário que vive num mundo preto e branco, pontuada pelas cartelas que marcam capítulos e cenas(com leves piscadelas sugerindo formas de apreciá-los), que trazem a impressão de se estar lendo a própria peça. Descascando todas essas camadas de ficção, percebe-se que a cebola de Wes Anderson é uma que amontoa toda a potencialidade do cinema como fazer artístico, unindo todas as outras formas de expressões artísticas dentro de seu processo.

E através dessa história pessoal "que é tudo", Wes Anderson concebe uma obra que reúne a sua carreira e que reflete sobre o próprio ato imprudente e alucinatório que é o de conceber ficções. Asteroid City trabalha a metalinguagem não para evidenciar sua própria concepção, mas para destituir-se de qualquer exigência de descrença. É um filme que deleita-se em ser ultrajante, sendo tudo que pode ser enquanto se mantém leve, sem ater-se a grandes emoções ou mágoas existenciais. É uma verdadeira bagunça, que se contenta apenas em ser a melhor obra de ficção que consegue ser, podendo tirar umas risadas aqui e ali, falar sobre a ingenuidade do primeiro amor e sobre a dor da criação, interessada em criar índices sobre imaginários do passado. No caminho, Asteroid City perde-se sem se descarrilar, faz voltas imensas para ver a melhor vista e diverte-se em zigue zagues que o deixam tonto, embriagado pelos óculos hipnóticos da inocência infantil. Acaba por seruma obra que acumula tudo que Wes Anderson já fez, e que homenageia tudo que um filme pode ser.