Biombo Escuro

27º Festival É Tudo Verdade

O Território

por Tiago Ribeiro

10/04/2022; Foto: Divulgação; Revisão: Ana Poquechoque

A resistência dos Uru-Eu-Wau-Wau diante das chamas dos novos tempos

As eleições de 2018 no Brasil foram o prelúdio de inúmeras tragédias que vieram a ocorrer no país nos anos que seguiram. As mais de 660 mil mortes por Covid-19 e as queimadas que destruíram o Pantanal são apenas as de maior escopo. Mas olhando para o país, vemos inúmeras perdas espalhadas por todo nosso mapa, como resultado direto da atuação da administração atual do presidente Jair Bolsonaro. O Território(2022), dirigido pelo estadunidense Alex Pritz, inicia-se no momento em que a administração atual foi legitimada pelo voto popular, e que um futuro incerto e assustador começou a se desenhar no horizonte.

O longa documentário, que protagoniza a sessão de encerramento do 27º Festival É Tudo Verdade, nos guia a partir desse momento assombroso, em que o candidato que defende pautas contrárias aos indígenas foi eleito para o cargo maior do executivo. A desesperança dita o tom desse momento de virada da história do Brasil, e O Território parte disso para as Terras Indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, cujos espaços são de particular interesse para grileiros e invasores. A opção de Pritz é por explanar ambos os lados, mostrando-nos vivências de alguns dos povos uru-eu-wau-waus e ações de grileiros. Ao por em perspectiva ambos os lados desse conflito, fica claro que as ações dos grileiros se intensificam por estímulo de falas do presidente, cuja apologia à invasão de terras indígenas justifica as ações dos grileiros entrevistados. Em paralelo, vemos a experiência dos povos indígenas que permanecem, apesar dos constantes ataques e da geral desvalorização de sua existência. O foco principal fica em Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, um jovem que amadurece entre os costumes antigos de seu povo e os constantes ataques à existência de seu povo.

Ao longo do documentário, que coleciona momentos em que a tensão entre esses dois lados se eleva, começa a transparecer o clima de conflito pela posse da terra, e por conseguinte do futuro. Os grileiros se justificam, dizem que fazem isso para conseguir sobreviver junto de suas famílias. Mas não há como esconder o rastro de destruição e o sofrimento causado por suas ações. É essencial ter esse lado, muito bem documentado pela infiltração do cineasta entre os grileiros, e como eles revelam a crueza da destruição levantada pelas chamas que seguem o rastro dos mesmos.

Se a vivência dos indígenas parece sufocada, isso não é mera coincidência. Entre os povos uru-eu-wau-waus, que eram milhares quando foram contatados pela primeira vez em 1981, restam menos de duzentos. E o que vemos é a continuidade e intensificação do massacre desse povo, estimulados por uma gestão governamental assassina e abertamente contrária aos direitos dos indígenas de todo o país.

O sopro de esperança vem com a história de Bitaté, conforme acompanhamos os ritos de seu povo e vemos momentos de leveza que remanescem entre toda a destruição. Pritz acompanha também a ação da indigenista Ivaneide Cardozo e nos conta sobre o caso do assassinato de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, um dos líderes dos Guardiões da Floresta, uma organização que monitorava e denunciava a ação dos grileiros.

No entremeio de todas essas questões, a pandemia de Covid-19 ocorreu, impactando fortemente as comunidades indígenas, muito por causa da inação e aberto negacionismo do governo federal diante da gravidade da situação. As restrições impostas impediram que o documentarista estadunidense continuasse filmando no Brasil, mas acabou por abrir novas possibilidades de linguagem. A partir desse momento, o dispositivo foi passado para a mão dos próprios uru-eu-wau-waus, que receberam câmeras e treinamento vindos da parte de Pritz. E o resultado é incrível, em um exercício de linguagem exímio, no qual o objeto de estudo do documentário torna-se seu agente e produtor, adquirindo novas características.

O Território é experimental na forma, e cru na medida em que expõe crimes e esfacela mentiras do governo Bolsonaro. É, ao mesmo tempo, o retrato de uma época trágica que se inaugurou em 2018, e um testamento contrário aos ideais que passaram a assombrar o Brasil desde então. Ideais esses destrutivos e contrários à sobrevivência dos indígenas, fato que é exposto e devidamente pensado dentro do filme de Pritz, cumprindo o papel de documentário com afirmações de extrema importância política, social e ambiental. Uma obra fílmica que deve ser considerada para se pensar um novo projeto de país, que respeita seus povos originários e garante os direitos às terras que os pertencem.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.