Biombo Escuro

47ª Mostra de São Paulo

Não ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO

por Tiago Ribeiro

27/10/2023; Imagem: Divulgação

A pós-realidade numa tela de chroma key

O cineasta romeno Radu Jude é notório por estar constantemente confrontando temas sensíveis, tensionando tabus sociais com humor ácido e personagens caricatos, que carregam em si as contradições e hipocrisias da moralidade romena, tão confrontada em seus filmes. Em seu mais recente esforço, Não Espere Muito do Fim do Mundo, Radu Jude traz novamente suas facetas verborrágicas e inescrupulosas, construindo um épico satírico, que por caminhos distintos chega aos mesmos tons de Southland Tales, de Richard Kelly.

Os prognósticos são similarmente apocalípticos. Seguimos as andanças de Angela, assistente de produção que faz toda sorte de trabalhos audiovisuais estranhos. Portando um vestido paetê luminoso que se assemelha a uma disco ball, e sempre ouvindo em alto volume os maiores hits do leste europeu, Angela dirige seu carro pelas ruas de Bucareste cumprindo um montante imenso de tarefas. Ela divide seu tempo entre ajudar sua mãe na disputa com uma imobiliária que quer fazer uma construção no lote de cemitério de sua família e a pesquisa para um vídeo institucional de sua produtora, que aborda a conscientização de trabalhadores sobre a importância do uso de capacetes para segurança. 

Angela enfrenta toda hostilidade desse mundo absurdo com dedos médios em riste e utilizando-se de um vasto léxico de insultos em romeno. Ela realiza sua pesquisa visitando famílias de trabalhadores que sofreram acidentes de trabalho. As tragédias com as quais lida raramente tem a ver com o uso de capacetes, mas sim com o abuso de patrões que submetem seus funcionários a cargas horárias inumanas e esparsas condições de segurança. A grande piada, ou tragédia, é que a própria Angela é sobrecarregada pelo seu serviço, estando constantemente exausta e estressada, arguindo com seu chefe que não aguenta mais trabalhar mais de 16 horas por dia. Mesmo assim, ela precisa gravar todas as conversas e apresentar para os produtores estrangeiros que estão financiando o vídeo. 

É desesperador, mas "para não enlouquecer", Angela interpreta um personagem em sua página no Tik Tok, inspirado no influenciador motivacional Andrew Tate. Falando todo tipo de piadas sujas e misóginas, ela extravasa toda frustação e abuso usando um filtro ridículo que a assemelha ao semblante de Andrew Tate enquanto esbraveja todo tipo de absurdos imagináveis. Entre a misoginia e as constantes piadas sobre a guerra da Ucrânia e a morte da Rainha Elizabeth, sempre temos esse respiro da tela de celular e da linguagem da internet, uma fuga do mundo cruel e vulgar de Não Espere Muito do Fim do Mundo.

Jude trabalha a montagem de seu novo longa alternando entre a modernidade de Bucareste, e a realidade da Romênia de 1981, no longa Angela Keeps Going, de Lucian Bratu. Nesse longa de Bratu, de forte cunho feminista, vemos uma mulher romena dirigindo um táxi, e tendo todo tipo de encontros estranhos com seus passageiros, que por muitas vezes estranham uma mulher estar nessa posição. Esse paralelismo, que ocorre também no nome das protagonistas, ressoa na medida em que ambas vagam por esse país hostil às mulheres, que às estranham na mesma medida em que se fascinam por elas. Essa questão já vinha aparecendo desde o último longa de Jude, Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, e esses resquícios de passado insistem em não desaparcer.

Nesse mundo terrivelmente consciente de suas próprias mazelas, o aparato cinematográfico surge como veículo capaz de expor as verdades veladas, mas igualmente capaz de manipulá-las. O plano sequência final, fixo e mordaz em sua estaticidade, se desenrola por dezenas de minutos, desvelando a ilusão do cinema. Angela e sua produtora estão fazendo o vídeo institucional que foram contratados. A história do trabalhador que se tornou cadeirante pouco tem a ver com o uso de capacetes, mas o que ele tem a dizer pouco importa. A história é drenada de sentido até que ela não está mais ali, se torna uma tarefa a ser resolvida na pós produção. A câmera mente. Tudo é artifício, e nesse mundo Charlie Hebdo das ideias de Radu Jude, quem vai contar a história são os mesmos que são responsáveis pelo apocalipse da modernidade.