Biombo Escuro

47ª Mostra de São Paulo

Em Nossos Dias

por Tiago Ribeiro

02/11/2023; Imagem: Divulgação

Para chegar à cerne

Já é conhecido que todo ano, novos filmes do sul-coreano Hong Sang-soo vão ser presenteados a todos os apreciadores de suas produções. A repetição faz parte da essência desse ritual, visto que o cinema de Sang-soo é um de recorrências e de familiaridades. Sempre vemos personagens similares, situações parecidas, os mesmos rostos e os mesmos dilemas. Ainda assim, o diretor parece estar sempre encontrando novas respostas, novas dimensões de significação que tendem a complexificar sua cinematografia, levando-a sempre a novos lugares.

Seus trabalhos mais recentes parecem ter atingido um certo minimalismo total, em que sua relação com os métodos de produção e com a própria natureza da linguagem retornaram a um novo princípio, o do cinema amador e com equipes extremamente reduzidas, em que todos assinam diversas funções e se faz muito com bem pouco. Nesse caminho, Sang-soo passou a assinar fotografia, edição, trilha sonora - algo que surgiu como necessidade na pandemia, mas que se transpôs em um novo ethos para o cinema do diretor.  

É o caso de Na Água, um de seus filmes do ano. Explorando os horizontes paradisíacos das Ilhas Jeju, Sang-soo faz galhofa das jovens gerações de cineastas colocando-os em uma desventura na tentativa de realizar um filme, ao mesmo tempo em que investiga as próprias fundações dessa expressão artística. Eles vagam sem rumo pelas praias, na busca pela história a ser contada, sem muito saber para onde olhar. A fotografia de Na Água transmite essa sensação perdida explorando diferentes níveis de desfoque, algo que se justapõe com a ausência de rumo das buscas de seus personagens, mas também com a própria perda de visão que o diretor vem experienciando ao longo dos anos. As imagens soam como pinturas expressionistas em movimento, e o filme transcorre nesse borrão de intenções envolvidas pela leveza dos filmes sobre férias. 

O segundo Sang-soo do ano é Em Nossos Dias, filmado predominantemente em internas e que carrega consigo a essência desse novo ethos que Sang-soo desenvolveu para sua filmografia. Aqui, mais do que nunca, as locações parecem intocadas, e não há o mínimo esforço para estetização. As performances, os diálogos, tudo trabalha nesse registro da simplicidade máxima, num esforço de realismo que se concretiza com muito pouco. 

Nada precisa ser mais do que é, grandes significados, respostas, perguntas, tudo isso já pouco importa Em Nossos Dias. A grande questão posta é, como ajudar a próxima geração, como aqueles já consagrados podem passar adiante aquilo que aprenderam com seus erros. Os diálogos giram em torno desses embates, algo que já vinha se tornando recorrente em seus filmes - em Encontros, um jovem ator leva um esporro de um ator mais experiente quando questionado se deve desistir de perseguir sua carreira.

Sang-soo parece buscar uma réplica as perguntas que mais o perseguem, mais direcionadas a ele por toda miríade de artistas que inspira e que admiram sua arte. É um assunto que o persegue, e não há resposta melhor a se dar do que fazer um filme que aborda essas inquietações.

Nesse pote de ramyeon com pasta picante estão muitos detalhes da cultura sul-coreana que realçam uma certa dificuldade de comunicação intergeracional. O excesso de zelo no tratamento aos mais velhos - exemplificado pelas inúmeras nomenclaturas que tem de usar ao se dirigir a eles - implica na criação de distâncias muitas vezes intransponíveis. Em certo momento, questionada pela jovem atriz Ji-soo(Park Mi-so) sobre como chegar a seu nível de performance, Sang-won(Kim Min-hee) comenta que é necessário retirar todos os véus, todas as barreiras que te afastam do seu verdadeiro eu. Apenas assim é possível entender suas próprias vontades, assim conseguindo criar nas artes da performance. Está posta aí uma nova essência; Em Nossos Dias é um filme honesto, sem camadas de significação ou linguagem que omitam sua verdadeira face.

Simultaneamente, uma jovem graduanda na escola de cinema realiza um documentário sobre o notório poeta Ui-Ju(Ki Joo-bong) como seu trabalho de conclusão de concurso. Ui-Ju sofre devido a seus problemas de saúde, que o impedem de beber e fumar, seus hábitos favoritos. Eventualmente outro jovem aspirante a ator se junta a eles com um acervo incrível de perguntas estúpidas, mas que proporcionam a já esperada cena de diversão embriagada tão notória dos filmes de Sang-soo. Nessa específica, eles jogam Ga-wi ba-wi bô(pedra, papel e tesoura) animadamente após o poeta deixar de lado as recomendações de seu médico.

O gato "Nós", figura de constante ternura no filme, seja nos planos em que está esparramado em seu canto ou recebendo afeto de suas donas, também gera estresses e problemas. De acordo com sua dona, ele está gordo demais, provavelmente pelo excesso de comida que ela oferece - ela não resiste de mimá-lo em toda oportunidade que encontra. O gato ainda assim foge, deixando sua cuidadora desolada e aos prantos, literalmente jogada no chão. A dificuldade de educar aqueles que vêm depois é uma constante, seja com bichos de estimação, seja com pupilos. Entender a próxima geração, suas preferências e embates com a tradição, faz parte de uma compreensão necessária para se ensinar. No mundo minimalista de Sang-soo, a responsabilidade sobre o que virá a ser do futuro é, mais do que nunca, daqueles que escrevem o presente.