Biombo Escuro

18ª CineOP

Alma no Olho

por Tiago Ribeiro

29/06/2023; Foto: CineOP

Dedicado à vida e arte de John Coltrane

Uma figura atípica dentro do ecossistema do cinema brasileiro no século passado, Zózimo Bulbul foi um ator e diretor prolífico, cujas obras assumem um papel de essencial importância para compreender a expressão cultural preta no Brasil da segunda metade do século passado. Em Compasso de Espera, único filme dirigido por Antunes Filho, Zózimo encarna um personagem típico da segunda fase cinemanovista, mas que encara as represálias da sociedade por se relacionar com uma mulher branca. Apesar de ser notório por seu trabalho como ator, Zózimo também dirigiu alguns filmes, todos bastante únicos em seus temas e emprego da linguagem. 

Em Alma no Olho, Zózimo mira a si mesmo em um filme orquestrado por Kulu Sé Mama(Juno Sé Mama), composição de Juno Lewis e musicada por John Coltrane. A canção, registrada no disco homônimo e lançada em primeiro de janeiro de 1967, foi o último registro de Coltrane lançado no tempo de sua vida. Ele veio a falecer em julho do mesmo ano devido a complicações de um câncer de fígado, muito associado ao seu abuso de heroína. 

O curta afirma logo nos créditos iniciais que é dedicado à vida e à arte de Coltrane. E não à toa, Zózimo cria imagens orquestradas perfeitamente sincopadas pela virtuosidade dos músicos, em uma canção com sobretons espirituais e que evocam todo uma sensação de tradição africana, que também se traduz na expressividade que Zózimo emprega em sua performance.

A sessão da qual surgiu Kulu Sé Mama(Juno Sé Mama), foi realizada no estúdio da Western Recorders em Los Angeles, e contou com John Coltrane no sax tenor, Pharoah Sanders também no sax tenor, Donald Rafael Garrett no clarinete, Frank Butler na bateria e Juno Lewis como percussionista e vocais. Este último, autor da música, foi responsável pelos cânticos entoados pela música, tudo contido em um poema autobiográfico escrito em um dialeto crioulo que celebra seus ancestrais. A sessão feita no estúdio marca o tempo de dezoito minutos e quarenta e nove segundos, em um esforço de virtuosidade de todos os músicos, no auge da experimentação jazzística sessentista que marcou essa época do trabalho de Coltrane.

Toda essa história acompanha a montagem febril de Alma No Olho, feita pelo próprio Zózimo, uma seleção caleidoscópica de sua própria figura, por vezes em interação com símbolos que perpassam a vivência negra no Brasil, em outras assumindo posições que evindenciem o corpo preto de forma performática. É um auto retrato que assume diversas formas, com implicações históricas, estéticas e espirituais. Afinal, tudo é feito sob um fundo branco infinito, que remete às fotografias de moda que populavam as revistas, mídia imensamente popular nos anos 60 e 70, de modo a constituir a visão do negro moldada pela indústria cultural.

Em sua performance, Zózimo explora uma miríade de sentimentos e expressões faciais, que se relacionam com sua própria figura e com as implicações da sociedade racista na qual vive. Ele começa o filme com um sorriso largo e corpo solto, explorando os limites do enquadramento com um forte senso de liberdade. Mas, acompanhando os movimentos da música, a montagem vai restringindo seu espaço de movimento, colocando literalmente correntes que o impedem de se mover livremente. De certo modo, esse desconforto e restrição de movimento passam pela experiência de Zózimo como um artista negro em um país que não conseguiu superar seu passado escravista, o que torna o símbolo das correntes tão potente. Se a música de Coltrane remete à ancestralidade africana, diante do olhar da sociedade brasileira essa expressão precisa ser contida, se encaixar nos moldes criados pelas suas próprias concepções racistas de mundo.  Alma no Olho  é o catalisador da quebra dessas correntes, a destruição dos moldes que tentam admoestar a vivência negra no país mais preto fora do continente africano, e que mesmo assim se afirma como um país extremamente racista.