Biombo Escuro

Estreias da Semana

Casa de Antiguidades

por Tiago Ribeiro

21/07/2022; Foto: Sinny Assessoria

O bestiário de alegorias do Brasil de Farrapos

Há muito a se processar sobre a ascensão da extrema direita ocorrida no Brasil durante a última década. Foi um avanço rápido e avassalador, conectado profundamente com o moralismo ultrapassado que foi herdado da época colonial. Criar alegorias que evidenciem essas doenças se prova uma tarefa árdua, visto que a realidade já tornou-se seu próprio símbolo de decadência. Mas João Paulo Miranda Maria faz uma tentativa de constituir em seu primeiro longa, Casa de Antiguidades(2020), uma que faça jus a uma realidade de tamanha distorção cognitiva e inclinação neofascista.

A tentativa é, certamente, ambiciosa e repleta de boas ideias. A escolha da lenda de Antônio Pitanga como protagonista é acertada, visto que ele constitui o personagem de Cristovam com diversas nuances e uma inegável imanência de tela. Cristovam é um trabalhador arredio originário de Goiás, que se mudou para o Sul do Brasil em busca de oportunidades. Casa de Antiguidades se passa nesse sul mitológico criado por João Paulo Maria Miranda, um lugar de crescente radicalização dos ideais separatistas da região, em que percebe-se a transitoriedade cultural através da linguagem, visto que muitas pessoas começam a falar puramente alemão. O horizonte do Sul de Maria Miranda é bastante distinto de como geralmente ocorre a mitologização da região nos filmes de Jorge Furtado, como Saneamento Básico(2007), geralmente se ocupando mais com os inconscientes cômicos do lugar. Fato é que em Casa de Antiguidades, Cristovam é perseguido por crianças que já portam armas de chumbinho e tem que ouvir em silêncio seu patrão falar, em bom alemão, que ele terá cortes no salário.

É interessante a opção do filme por transmutar esse clamor antigo de separação da região sul do país. Ela está presente desde as rondas da Revolução Farroupilha, ocorrida em meados do século XIX, e é posta como o equivalente preciso para o reacionarismo cosmético de arminhas nos dedos e delírios anticomunistas. Essa vontade de expressar uma tendência moralista da sociedade como um símbolo em Casa de Antiguidades, lembra a visão iconográfica de Brasil S/A(2014), filme de Marcelo Pedroso que almeja traçar uma genealogia cinematográfica da história do Brasil através de abstrações alegóricas sobre o presente. Ambos os filmes expressam as doenças ideológicas que nasciam e que eventualmente se desenvolveram no país ao longo da última década. Ambos os filmes pecam, no entanto, na mão pesada com o uso desses artifícios, que minimizam suas formulações sobre a realidade, excessivamente interpostas por tantas camadas de codificação.

No entanto, o que Mirando Maria faz bem é beber da fonte do cinema de Apichatpong Weerasethakul, como fez também a diretora argentina Agustina San Martín em Como Matar a Besta(2021), para conjurar momentos de sublimação espectral através dos inconscientes folclóricos de nosso país. Se o recluso Cristovam é levado à bestialização pela opressão dos ideários e comportamento dos sulistas, percebemos que a própria natureza começa a reagir e a se mostrar em Casa de Antiguidades, conforme outra dimensão de existência passa a assombrar o filme. Estes são os momentos em que as imagens tornam-se mais distintas, e que a performance de Antônio Pitanga consegue ascender a tons mais sombrios e primitivos, com a direção de Miranda Maria operando de forma mais precisa e coesa nesses momentos.

Mesmo que esteja envolto de excesso de códigos e de elementos simbólicos, Casa de Antiguidades ainda consegue formular um discurso forte sobre dimensões políticas, históricas e sociais vividas em nosso país. João Paulo Miranda Maria não perde a oportunidade de levantar uma lança diante das aberrações humanas que nascem dos impulsos neofascistas brasileiros, nem de criar um horizonte mitológico essencialmente brasileiro e de sublimação equiparável ao onírico e visceral de Vento Seco(2020), de Daniel Nolasco. Mas sua maior virtude é conseguir materializar a história que passa pela terra de nosso país, encontrando maneiras de traduzir para a forma fílmica suas expressões espectrais.

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.