Biombo Escuro

18ª CineOP

A Rainha DIaba

por Tiago Ribeiro

28/06/2022; Foto: CineOP

Todos devem obedecer a rainha

No auge dos anos 70, a produção cinematográfica brasileira encontrava terreno fértil para sua produção cinematográfica comercial, com um mercado impulsionado pela Embrafilme, que difundia e possibilitava a produção de certos filmes. Em 1975 passava a Lei do Curta, que estabelecia a obrigatoriedade da exibição de um curta-metragem brasileiro antes da exibição de um longa-metragem estrangeiro, destinando-se 5% da renda bruta da bilheteria sendo destinada aos realizadores do curta brasileiro. Foi uma iniciativa que trouxe muitos espólios para os produtores de curtas, fomentando a produção de mais filmes e esquentando o mercado. É importante ressaltar, no entanto, que a prosperidade do mercado cinematográfico se deu para apenas alguns tipos de filmes. Muitas vozes foram silenciadas, em uma época vil da história brasileira.

Fato é que desse boom de produções dos anos 70 nasceram muitos filmes. Um dos cineastas dessa época era Antonio Carlos da Fontoura. Tendo realizado curtas documentários Os Mutantes(1970) e Meu Nome é Gal(1970) junto dos tropicalistas, além do longa Copacabana me Engana(1969), o diretor aparecia como uma voz proeminente do cinema brasileiro. Em 1974, Fontoura lança A Rainha Diaba, um filme que se inspira fortemente na figura de Madame Satã, ou João Francisco dos Santos, o notório malandro da lapa que praticava cross-dressing e também tinha forte envolvimento com a criminalidade carioca. 

Recentemente, A Rainha Diaba ganhou nova vida, com uma nova restauração em 4k realizada pela associação Cinelimite, organização dedicada a difusão da história da história do cinema brasileiro. A nova restauração foi exibida na mostra Forum Special da Berlinale 2023, e tem circulado por diversos festivais e salas. Mais recentemente, contou com uma exibição na Mostra Preservação da 18ª CineOP, em sessão que contou com presença do próprio Antonio Carlos da Fontoura, que comentou que seu filme de 50 anos nascia de novo com essa restauração. E, de fato, o filme foi pouco visto em sua época de lançamento, mas tem angariado muita atenção por parte de audiências modernas, interessadas em expressões cinematográficas queer que conseguiram ver a luz do dia no século passado.

O filme de Fontoura é bastante distinto de Madame Satã, filme realizado por Karim Ainöuz em 2002. Na iteração moderna, temos um retrato fidedigno do misticismo que envolveu a história de Satã nos anos 30. Ainöuz constrói uma estética suja junto com o trabalho de Walter Carvalho na fotografia, com poucos respiros na Lapa claustrofóbica da época. 

Em A Rainha Diaba temos uma história bem menos séria, dialogando muito com o exploitation e com o cinema de gênero setentista. O personagem encarnado brilhantemente por Milton Gonçalves caminha entre o pitoresco e o sinistro, marcando as nuances da performance com a mudança do registro da voz, que sempre vem em momentos inesperados, trazendo nova luz ao andamento da cena. Mesmo que seja fantasiosa, a realidade retratada não é muito mais lisonjeira que a do filme mais moderno de Karim Ainöuz, em um rio de janeiro tomado por facções criminosas com líderes cartunescos. Todos os criminosos atuam por debaixo do guarda chuva da Rainha de Milton Gonçalves, e uma disputa de poder surge devido a conflitospelos lucros do tráfico.

Dentre os coadjuvantes chefes criminosos destaca-se o trabalho do eterno trabalhador do cinema brasileiro Wilson Grey, figura marcada de inúmeras produções do século passado, interpretando o Manco, que sofreu com a fúria da Rainha Diaba. O filme também conta com performances de Odette Lara e Nelson Xavier. O linguajar que todos usam é repleto de frases de efeito e gírias dos anos 70, e Fontoura colore seu filme com cores aberrantes e rock psicodélico.

Em um Rio de Janeiro muito aquém dos filmes do Neville D'Almeida, A Rainha Diaba se firma como uma das grandes expressões do cinema queer brasileiro, em uma nova atualização que deve permitir que o filme circule e seja apreciado por audiências ao redor do mundo, gerando debates aquém para a radicalidade de um filme tão disruptivo realizado em uma época tão conturbada.