Biombo Escuro

25º Festival do Rio 

Monster

por Tiago Ribeiro

13/10/2023; Imagem: Festival do Rio

Dos fragmentos ao todo

Hirokazu Kore-eda é um dos diretores japoneses mais interessantes desse século, tendo seus filmes celebrados por festivais internacionais e alcançado certo prestígio em Cannes. Suas histórias um particular interesse pelas zonas cinzas da moralidade, onde habitam indivíduos disfuncionais e aqueles que não se encaixam na sociedade, geralmente trabalhando com a ideia de família, e como ela é distante da realidade. 

Longe de ser um diretor antipatriarcal ou que faz proposições ideológicas, Kore-eda se mostra mais como um observador da graça que surge entre a conexão profunda que surge entre as pessoas, que vai além dos laços de sangue e de quaisquer papéis definidos pela sociedade. De seus filmes nascem momentos de doçura, que marcam a conexão entre as pessoas, e também lamentos sobre como essas conexões se esvaecem e afastam as pessoas. 

Essa temática leva o diretor a estar frequentemente trabalhando com atores mirins, imbuindo seus filmes de um fascínio pelo imaginário infantil que os torna inocentes diante de mundos gigantes e, muitas vezes, crueis. Em Nobody Knows o jovem Akira Fukushima, com apenas 12 anos, é relegado por sua mãe a cuidar de seus três irmãos mais novos, exigindo do menino um amadurecimento forçado que exige muito dele.

Em Monster(Kaibutsu), filme mais recente de Kore-eda, exibido no 25º Festival do Rio, o mundo infantil aparece com outros contornos. Na sequência inicial o diretor filma um incêndio que consome um bar de hostess, e toda comoção que se gera ao redor do evento em uma cidade do interior do Japão. Somos introduzidos ao jovem Minato, que é encontrado por sua mãe Saori escondido em um túnel abandonado, com um olhar que parece carregar traumas grandes demais para serem ditos. 

Saori, interpretada por uma convicta Sakura Ando, decide investigar ao fundo o que aconteceu com seu filho, que rapidamente relata abusos sofridor por parte de seu professor, o Sr. Hori, que supostamente teria implicado que seu cérebro foi tranplantado por o de um porco. A mãe prossegue para questionar o colégio onde Minato estudo sobre o ocorrido, e desse ponto em diante Kore-eda começa a manipular a cronologia do filme de uma forma hábil(ele também assina a montagem de Monster), multiplicando as perspectivas e destrinchando a história conforme retorna no tempo trazendo novos fatos e perspectivas.

Ecoando filmes como o dinamarquês A Caça, a investigação que Kore-eda estabelece através da estrutura do seu filme se propõe a dizer que nem tudo que parece, é. De certo modo, ele é um montador não confiável, porque busca justamente o enquadramento incriminador, o momento que parece ser a prova do crime, apenas para nos levar adiante ao retornar mais na história e nos desvelar mais um fato que desprova as falsas impressões criadas. Kore-eda brinca com isso, e reflete sobre como a moralidade da sociedade tende a criar seus monstros. 

O personagem de Hori contra argumenta com a versão de Minato dos fatos, mas sua condenação parece certa visto que ele é um jovem que notoriamente frequenta casas de prostituição, o que parece ser um testamento da sua falta de caráter. Ao mesmo tempo vemos que a relação de Minato com seu colega de classe Yori é marcada pelas imposições comportamentais da sociedade, que os subscreve a posições opostas, mesmo que pareçam nutrir um profundo afeto um pelo outro. 

Por esses caminhos, Kore-eda cria essa distorção onde o monstro só está contido no enquadramento restrito que vemos, no pequeno pedaço de realidade ao qual temos acesso. E desse modo tudo vai se desdobrando e se aprofundando, e o filme desprova tudo que a superfície leva a crer, através de sua montagem que vai dos fins às sínteses, conduzindo o espectador através de um olhar que julga antes de procurar entender. Monster não é como Rashomon, que reflete sobre a influência da subjetividade na forma como se constitui a memória, funcionando mais como um mistério detetivesco das impressões erradas, das presunções que surgem ao se lidar com fragmentos e não com o todo.