Biombo Escuro

festival do rio

O HOMEM IDEAL

por Alberto A. Mauad

11/12/2021; Contém Spoilers; Foto: Divulgação

Se o diretor estadunidense Howard Hawks têm as suas obras reconhecidas pela evidência do gestos minuciosos de seus personagens, que nos impulsionam emoções específicas apropriadas para o seu universo dimensionado, isso acontece, acima de tudo, porque ocorre entre relações precisamente humanas, tal palavra que, por si própria, já carrega signos evidentes do nosso comportamento. Contudo, será que esses mesmos atos causariam efeito semelhante em nós, o público, se fossem replicados por uma inteligência artificial? Falo de, exatamente, um organismo que não experiencia a vida – suas alegrias e suas tristezas – da mesma forma que os seres humanos, tratando-se apenas de uma programação, planejada para exercer tais movimentos vitais e imperfeitos. Ante o exposto, esse suposto filme ainda teria o mesmo impacto nas pessoas?

Dito isso, o ponto de partida, um tanto clichê, de O Homem Ideal (Maria Schrader, 2021), passa por girar cabalmente em torno desses contrastes entre o artificialismo e a realidade humana. Seu enredo trata de uma cientista pesquisadora chamada Alma Fraser (Maren Eggert), que é contratada por uma empresa para estudar pares românticos robóticos e, assim, analisar quais deveriam ser os seus direitos perante nossa sociedade. Logo, somos apresentados também a Tom (Dan Stevens), que é uma máquina traçada para ser o par ideal de Alma.

É engraçado como que na cena inicial a película parece partir justamente para uma outra direção, para um lado mais idealizado ou, até mesmo, onírico. Pois há uma leveza dos planos, um som alto de uma música acelerada e envolvente, com pessoas rindo e dançando com vontade, transparecendo uma montagem, a princípio, bastante rítmica e divertida. Todavia, tais características que pareciam vir instintivamente de um sonho, se desmancham por terra alguns segundos depois, quando percebemos que o personagem de Dan Stevens exerce as repostas mais automáticas possíveis para as perguntas de Eggert, assim, não estamos mais em um mundo idealizado, e sim em um futuro palpável e disfuncional, onde uma inteligência artificial foi cuidadosamente programada para suprir o lado mais delicado das pessoas: o amor.

Portanto, essa esfera de divergências é o fio condutor para a total articulação da mise-en-scene proposta por Maria Schrader, que não restringe isso apenas aos sujeitos de sua narrativa, mas também a todo o espectro fílmico.

Em vista disso, a diretora alemã articula uma fotografia bastante formalista, preocupado nos sentimentos e reflexões evidentes acerca de seu tema. Diversas vezes, em alguns planos e contraplanos, ela deixa borrado todo o entorno dos intérpretes, por outras, quadros mais contemplativos nos são revelados, principalmente, da cidade à noite. É desempenhado, então, uma decupagem minuciosa que age de acordo com os contextos destacados.

Entretanto, tais planos não funcionam sozinhos. A iluminação em O Homem Ideal, é demasiadamente estilizada, ficando no meio termo entre esse artificialismo e realismo. Percebemos isso quando visualizamos como a luz se propaga, reflete nas superfícies e possui todos os seus focos brilhantes borrados, causando assim, diversos efeitos nos telespectadores. Logo, quando se passa em um período noturno, em que a luminosidade dos prédios se dissemina dessa maneira peculiar, quase maneirista, temos um sentimento melancólico. Porém, quando a claridade vem de velas, temos um outro impacto, como na sequência em que Tom tenta preparar um date romântico entre ele e Alma no banheiro, no qual ela recusa a sua sugestão. Apesar disso, a máquina decide, da mesma forma, aproveitar tal cenário projetado. Isto posto, a vela estilizada, com as pétalas vermelhas, os morangos, e os planos fechados nos detalhes da gentileza dos gestos, causam, a priori, uma afirmação de um romanticismo e, quando percebemos que é um robô naquela situação, é provocado uma comoção ambígua, já que, o protagonista de Dan não deveria ser capaz de sentir o desejo ardente profundo e sentimental desse ambiente – mesmo que ele tenha sido programado para transparecer irritabilidade ou tesão em determinadas condições.

Além disso, a cenografia chama absoluta atenção para essa dialética. Se nos encontramos dentro da empresa de inteligência artificial, temos um local limpo, branco, nada sujo e livre de penumbras. Contudo, as casas das pessoas são excessivamente bagunçadas, constituintes de um jogo entre luzes e sombras, dando força a esse embate artificial/humano revelado por Maria Schrader. Portanto, consequentemente, quando Dan Stevens reorganiza o apartamento de Alma, sem a sua permissão, é projetado de cara uma estranheza, pois é, involuntariamente, retirado um elemento primordial a nós humanos: a nossa própria desorganização, que não deixa de ser um traço definitivo particular que possuímos. Sendo assim, para a protagonista de Eggbert, a arrumação de Tom é praticamente uma violação, dado que, funciona para manter esse abismo de distanciamento entre ambos. É um protesto, de fato, dado que, para a empresa e o artificialismo o ideal é a hiper estruturação, para nós isso é uma infração e corrupção das características humanitárias.

Ademais, a trilha sonora, presente incansavelmente durante a obra inteira, varia desde algo um pouco mais eletrônico para um jazz mais relaxante. O que é curioso, pois o jazz, apesar de ser conhecido por um gênero de improvisos, ele requer, sempre, uma escala harmônica única, onde o instrumentista nunca pode fugir dela, pois é aí que residiria o erro. E não seria isso também o que forma as nossas personalidades? Enquanto que o robô se encontraria na parte mais eletrônica, nós somos esse estilo que é imperfeito e regido de improvisação, mas que possuímos a nossa própria escala, e que dificilmente agiríamos de forma muito diferente da qual somos esperados. É por esse exato motivo que as pessoas, nossos amigos, diversas vezes brincam de prever a nossa atitude. Somos, basicamente, Jazz.

Percebemos, também, no filme, comparações essenciais ao mundo animal. Uma vez que, se Fraser se sente dividida em relação aos seus sentimentos e vai para a varanda de sua residência – como faz muito durante a película inteira – para refletir, ela observa em determinado momento um grupo de formigas trabalhando. Tais animais que, mesmo sendo irracionais, são munidos de instintos e sentimentos. Dialogando, da mesma forma, com o grandioso plano em que cervos e alces se aglomeram em volta de Tom, auxiliado pela computação gráfica que a diretora alemã não tem medo de utilizar – abrindo inúmeras possibilidades à sua mise-en-scène –, causando uma ambivalência, onde afasta-se aquele organismo falacioso artificial daquela paisagem natural e viva, revelando uma proposta de não pertencimento mas que, ao mesmo tempo, impõe ele no mesmo nível que todo o nosso universo fundamental.

Portanto, mesmo que a narrativa tome conta desta relação e da rejeição de Alma por Tom, há algumas reviravoltas seguidas de momentos pontuais lindos e românticos entre ambos, que, por conseguinte, ela logo passa a brevemente repensar e rejeita-lo novamente, causando uma crise existencial cíclica na protagonista. Nós somos chamados, então, a não só sermos voyeur desta dupla, e sim a também sentir empatia até mesmo por uma programação, exatamente nos tempos em que Eggbert trata o personagem de Dan grosseiramente. Todavia, também nos sentimos aliviados quando Fraser o defende e indaga que, talvez, Tom não seja tão diferente de nós assim.

Para concluir, retornando as obras de Howard Hawks, se muitas vezes nos divertimos devido a uma química inerente entre os personagens, causado por seus gestos e interações magníficas, como em Onde Começa o Inferno (1959), Rio Vermelho (1948), Paraíso Infernal (1939), etc. Aqui, pelos mesmos motivos, somos atraídos por um lado mais cômico, reflexivo e leve, fruto das convivências da máquina com os mais variados tipos de personalidades humanas.

    Alberto A. Mauad

    Redator

    Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.