Biombo Escuro

Festival do rio

MANGUEBIT

por Tiago Ribeiro

11/12/2021; Foto: Divulgação

O que estava sendo cozinhado no forno quente da realidade urbana na qual viviam milhares de jovens no Recife durante os anos 90? A alcunha de “quarta pior cidade do mundo para se viver” enchia a boca de muitos jovens em pleno rebuliço diante da situação vivida por todos na cidade. É nesse contexto que se constrói o documentário Manguebit, filme dirigido por Jura Capela, que se propõe a rememorar e refletir sobre um momento único da música pop brasileira.

O diretor emprega muito bem em seu filme imagens do princípio do movimento manguebeat, muitas delas feitas por ele mesmo e outras retiradas daquele momento de efervescência, oferecendo ainda uma perspectiva atual das cabeças que trouxeram o manguebeat para o mundo. Movendo-se sem esforço entre o passado e o presente nas palavras de seus entrevistados, o filme articula o modus operandi do movimento entre o manifesto “Caranguejos com Cérebro” e a realidade da Recife do início dos anos 90, sem poupar as caixas de som com os batuques tempestuosos das músicas de Chico Science e Nação Zumbi, que permeiam o tecido do filme, seja no baque virado ou no baque solto. Mas sem deixar de abordar outras bandas e até outras cenas que também se firmaram na época, como o hardcore da banda Devotos do Ódio.

A questão dos videoclipes e da midiatização do movimento é muito bem explorada, inclusive, abordando a ida da Mtv ao Recife e a massificação da proposta do movimento, de onde nasceram os mangueboys e toda uma revolução comportamental ideológica. A partir daí aparece no filme o que talvez seja mais gritante dentro do manguebeat, que é a proposta de um modo de vida e de uma visão mundo essencialmente moderna, urbana e globalizada. Uma que representou algo maior a que se subscrever, em profundo diálogo com o espaço habitado pelos jovens de Recife, em uma flora tão diversa como a do mangue de um misto de hip hop, punk e ritmos africanos.

O documentário recria o nascimento de uma relação de som, manifesto, atitude, indústria e modernização que encapsulou o manguebeat. Entre os ocasos e eventos da época, testemunha-se o nascimento de amor pelo próprio lugar em que se vive, no qual surgiu algo que enfim dava voz para o tumulto interno daqueles que habitavam a "quarta pior cidade do mundo". Com a precisão rítmica e fluência rápida do hip hop, Chico Science enuncia em Banditismo por uma Questão de Classe:

Oi sobe morro, ladeira córrego, beco, favela

A polícia atrás deles e eles no rabo dela

Acontece hoje e acontecia no sertão

Quando um bando de macaco perseguia Lampião

E o que ele falava muitos hoje ainda falam

"Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala!"

Em cada morro uma história diferente

Que a polícia mata gente inocente

Aparentemente sem esforço, Chico cria imagens vívidas e rápidas em uma cena com ecos históricos, na reverberação de um hino contra a violência policial. É essa a essência e o tecido de Manguebit, obra que faz jus e emprega em sua própria linguagem o que fez o movimento viver adiante, em uma obra de reencontro do diretor com um material capturado 25 anos atrás e que encontra imensas dimensões de significação.

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.