Biombo Escuro

FESTIVAL DO RIO

DIÁRIOS DE OTSOGA


por Alberto A. Mauad

12/12/2021; Foto: Divulgação

Tabu (2012), de Miguel Gomes, é uma obra que tem a sua narrativa inserida em um contexto formal, onde toda a sua unidade fílmica possui conotações que vão se dividindo em dois a cada nova proposta inserida. Aqui, agora colaborando com a Maureen Fazendeiro, em Diários de Otsoga (2021), é retomado a um modelo que requer que nós enxerguemos e pensemos duas vezes a sua sugestão de idealizar uma película contemplativa em uma situação de confinamento, mas que também acaba exercendo uma reflexão munida de duplos sentidos metalinguísticos.

Portanto, sua história gira em torno de três amigos – Crista (Crista Alfaiate), Carloto (Carloto Cotta) e João (João Nunes Monteiro) – que se isolam em uma casa de campo e decidem construir um borboletário. Contudo, a ordem das datas começa de trás para frente – do dia 22 ao 1 –. Além disso, em determinado momento, o filme se abre e passamos a acompanhar a produção da própria obra que estávamos assistindo, sendo assim, a equipe toda de gravação aparece e toma-se mais um novo rumo.

O fato de toda a cronologia da realização, inclusive o título – Otsoga –, estarem invertidos estabelece uma relação bastante efêmera com toda a situação e com a vida em si. Embalando, assim, nessa observação, se os diretores querem que vejamos os dias como algo passageiro, do quê importa, então, criar uma narrativa dramática clássica? Logo, a beleza dos pequenos gestos banais em diversas ocasiões se torna muito mais interessante.

Em um primeiro momento, visualiza-se aquele local, cercado por um ambiente natural, quase como um lugar mágico, bastante auxiliado pela iluminação demasiadamente colorida, adentrando-se em um certo estado de transe. Esta mesma luz também faz um papel de ponto de virada nas relações metalinguísticas. Por exemplo, na cena em que Carloto e João jogam sinuca; o primeiro começa repetindo um diálogo que já foi dito anteriormente em outro dia, algo sobre odiar festas; todavia, nesse contexto, a troca de cor da claridade artificial por um determinado tempo faz com que João recite as mesmas frases que Carlotto havia acabado de proferir, como se nada tivesse acontecido. Constata-se isso, pois não há esse arco dramático de personagens – como Miguel Gomes e Maureen irão tentar explicar para os próprios atores mais a frente –, então não há pertinência em qual dos dois seja, de verdade, o sujeito tímido e que não gosta de festa.

Essa fotografia contemplativa, no início, consagra uma via dupla. Quando o borboletário ainda se dava como ideia chave da realização, os protagonistas sempre se encontravam atrás da rede que aprisionam tais insetos, o que insere, justamente, uma sensação de claustrofobia e confinamento àquelas pessoas, contrastando com essa noção libertadora que têm-se daquele local. Mas que, ao mesmo tempo, consegue realçar a sutileza do encanto das situações ordinárias.

Agora, já inseridos no contexto metalinguístico, a produção parte para não somente achar esses instantes instigantes comuns em volta dos personagens, e sim no próprio ato de realizar uma película. Dessa maneira, torna- se demasiadamente mais divertido assistir ao período anterior da gravação de uma cena, ou da equipe técnica conversando durante ela, do que a sequência em si. Como também é encantador ver esse entrosamento: da preparação para o episódio do beijo entre Crista Alfaiate e Carloto Cotta; os membros andando de trator em câmera lenta; os diretores dando o direito ao atores de escolherem quais serão as cenas dos próximos dias e, consequentemente, assistir ao seu resultado; e até a discussão cômica que Cotta exerce ao roubar as meias de um outro integrante da elaboração da obra, onde ele afirma que está usando a vestimenta para auxiliar no isolamento da persona do ator com o protagonista.

Concluindo, então, Diários de Otsoga determina essa apreciação entre contrastes, tanto em uma relação de confinamento x liberdade, de documental x ficção – onde, a partir da metade do filme, ela nunca vai, realmente, para um lado ou para o outro, quebrando essa linha tênue entre os gêneros – e ator x personagem. Onde somos requisitados apenas para relaxar, prestar atenção e desfrutar dessas ocasiões tão efêmeras e que perpassam todos os cantos da nossa natureza vulgar cotidiana.

    Alberto A. Mauad

    Redator

    Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.